Zélia Dunca, uma artista mutante

Aquiles Rique Reis, vocalista do MPB4, comenta o novo trabalho da cantora Zélia Duncan

Aquiles Rique Reis, vocalista do MPB4, comenta o novo trabalho da cantora Zélia Duncan, Antes do Mundo Acabar, que traz apenas sambas.

Desde que recebi Antes do Mundo Acabar (Biscoito Fino), o novo CD de Zélia Duncan, só com sambas, pus-me a matutar sobre sua trajetória. Quando ela topou integrar o grupo Os Mutantes, havia passado a admirá-la pela coragem. Só mesmo uma mulher pronta para experimentações teria a sua humildade e sabedoria. Saiu mais forte do que quando entrou. E retomou a carreira solo.

Liguei-me então à sua carreira, como o musgo gruda na pedra. Pus-me a ouvir e curtir cada um de seus discos. Mais recentemente, passei a acompanhar sua verve de cronista n’O Globo… posso concluir que, apreciando-a, eu torço por ela. Produzido pela musicista Bia Paes Leme, o CD tem dez sambas com letras de Zélia compostas com diversos parceiros e quatro de outros autores. Assim, ela ousa dar novo salto no escuro – salto tão ousado quanto quando decidiu ser mutante.

Novo trabalho de Zélia Duncan traz apenas sambas
Novo trabalho de Zélia Duncan traz apenas sambas

Antes do Mundo Acabar traz uma intérprete que se dá por inteiro a cada afazer de sua vida. Intensa, com voz grave, Zélia fez-se uma sambista apaixonante e sedutora. Seu jeitão de frasear as melodias, suingado e afinado, e com uma maturidade difícil de encontrar nos que pretendem ter o samba como ofício, são provas da minha declaração: Zélia está cantando às pampas!

“Destino Tem Razão”, uma das três parcerias de ZD com Xande de Pilares (as outras duas destoam da concepção de samba do CD), abre o trabalho. As congas (Thiago da Serrinha) marcam o ritmo. Os violões (Marco Pereira e Webster Santos) e o bandolim (Luis Barcelos) trazem a harmonia. O ritmo é intenso. A primeira parte é cantada com vigor por ZD. As congas matam a pau. Na segunda parte, o ritmo acrescenta o repique de anel ao suingue… Meu Deus!

O bom samba “Dormiu Mas Acordou” (Arlindo Cruz e ZD) tem cavaquinho e tem pandeiro (Thiago da Serrinha). Tem ginga e um afinado coro misto, além de outra boa letra de Zélia. O samba lento “Alameda de Sonho” (Ana Costa e ZD) inicia maciamente com dois violões e um ganzá. A cuíca dá o ar de sua graça. Um belo intermezzo de violão aumenta a beleza do samba.

“Por Que Você Não Me Convida Agora?” é um ótimo samba de roda de Riachão. Com tantã e violão de sete cordas, a levada ganha picardia. Na repetição, Zélia dobra o canto consigo mesma. O coro come. “Antes do Mundo Acabar” (Zeca Baleiro e ZD), samba lento que dá título ao disco, tem ótima letra de Zélia. Violão, bandolim e pandeiro iniciam. ZD divide bem as frases, o suingue agradece e cresce. Acrescido do afoxé, logo o ritmo está de volta. Fim.
“Por Água Abaixo” é samba dos bambas Pretinho da Serrinha, Leandro Fab e Fred Camacho.

Belo é o samba lento “Um Final” (Pedro Luis e ZD), e Zélia emocionando. A gaita de Gabriel Grossi dá ainda mais graça para “Pintou Um Bode”, samba esperto de Paulinho da Viola. “Vida da Minha Vida”, belíssimo samba de Moacyr Luz e Sereno, fecha a tampa. Final de um novo ponto de vista dado ao samba, idealizado e concretizado por Zélia Duncan, tão loucamente genial quanto mutante de carteirinha.

* Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4