R.E.M.
O jornalista Daniel Souza Luz escreve crônica sobre um sonho lúcido
Estávamos em um restaurante na rua Paraíba. Conversava com um velho amigo, João Vinicius Carvalho Guimarães, mas não me lembro sobre o que conversávamos e se já havia almoçado ou não.
Do terraço vejo um disco voador pousar no centro de Poços de Caldas. Disco por assim dizer, era um objeto afunilado e cinza, como um míssil; no entanto, pousou sem causar estragos aparentes.
O céu estava muito azul e a cidade bem iluminada, o cenário devia refletir o meio-dia. Levanto-me para ver se havia mais algo de diferente. No local onde o OVNI pousou levanta-se outro objeto. Ele voa na nossa direção.
Sobe para bem próximo de nós. É um caminhão verde. Vejo-o passar, como se estivesse transitando numa rua que sobe à nossa direita, a rua Goiás, fazendo barulho de trocar marcha e com os pneus rodando.
Como não tem lógica, logo chego a uma conclusão: é um sonho. Como é bom ter sonhos lúcidos. O restaurante não existe no mundo real. No lugar dele há um consultório médico. Volto à mesa e digo para o João que ele não é o verdadeiro João. Ele ri.
– É claro que sou de verdade.
– Não é. Você existe, mas não aqui. Isso é só um sonho.
– Claro que não.
Diante da incredulidade dele, dirijo-me à mesa ao lado. Havia um sujeito moreno sentado nela, almoçando sozinho. Diverte-me haver tantos personagens, quero conversar com eles. Nunca o havia visto, que me lembre, mas o reconheceria voltando à realidade, caso não fosse um construto da minha mente. Abordo-o. Como estou no controle, quero ver até onde consigo bagunçar aquele cenário, antes de acordar.
– Cara, desculpe-me dizer, mas você é apenas a projeção do meu ego.
Por que será que disse essa frase? Não me soa natural. Agora percebo que isso denota que eu não estava totalmente no controle.
– Como assim?
– Você não existe de verdade. Isso é um sonho. Você é uma projeção do meu ego.
Essa frase, de novo.
– É claro que eu existo.
Desisto de tentar convencer aqueles fantasmas que logo eles irão desvanecer. Se alguém dissesse isso para mim no dia a dia, por que eu levaria a sério? Resolvo ir para a rua.
Desço e encontro uma senhora muito simpática, de cabelos grisalhos pendendo mais para o branco. Lembro-me melhor de suas cãs do que seu rosto, mas não era vincado, havia poucas rugas. Ela me cumprimenta e eu retribuo. Ela está decidida a conversar comigo.
– Sabe a Renata?
– Qual?
– A que fez faculdade aqui.
– Sei sim.
Não sabia. A Renata em que pensei fez faculdade fora. Queria encerrar a conversa.
– Ela é reencarnação de uma oligarca da cidade.
Reparo como essa senhora está elegantemente vestida, com um colar dourado e vestido laranja – o que talvez seja démodé ou de mau gosto no mundo real, mas sei lá, não me interessa.
– É mesmo?
– A família dela é muito gente boa.
Uma moça de uns quarenta e poucos anos passa na rua. Ela tem os cabelos muito negros, mais rugas do que a senhora que a senhora que conversava comigo em frente à porta, um belo sorriso. Ela me dá um tchauzinho e aceno de volta.
– A senhora me dá licença – atalho e saio pela rua.
Não vou atrás da moça que acenou para mim e nem espero pela resposta da senhora que conversava comigo. É o meu sonho, pô! Eu devia estar controlando-o, pois estou consciente de que é um sonho! Mas não me irrito, estou muito fascinado. Assim que saio pela porta deparo-me com uma locadora de vídeos, onde pegava filmes para assistir no videocassete.
A locadora daqueles tempos do VHS chamava-se Loc Luc e fechou ainda nos anos oitenta, no mais tardar nos anos noventa. Livre de empecilhos, vejo que há um número razoável de pessoas caminhando pela rua. Grito com vontade:
– Isso é um sonho! Vocês não existem!
Mal abro o berreiro, uma viatura da PM aparece na esquina. Ressabiado, nem reparo na reação dos transeuntes. Por via das dúvidas, acho melhor parar de gritar. Esses caras têm que reprimir até sonhos? Curioso: em vários sonhos lúcidos, desde criança, controlo tudo, até mesmo a construção da paisagem, conscientemente.
Neste não está rolando. Por outro lado, ele está durando mais do que outros. Talvez sejam mesmo projeções do meu ego (ou do meu superego reprimindo meu id, algo assim, se não estou confundindo os conceitos) todos esses elementos que me impedem de circular livremente e modificar os cenários.
Quietamente, viro a esquina pensando no tempo em que já estou acordado dentro do sonho e ainda não despertei. Uns dois, três minutos? Talvez mais. Acho que nunca durou tanto. Quando penso em gritar novamente para as pessoas que elas não existem, vejo que a rua Goiás está vazia. Então ela evanesce. Foi só isso e tudo isso.
* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com