Reflexões de um boêmio

No final do século XX, um poços-caldense da gema nos legou um importante romance, que é o retrato de uma época. Corria o ano de 2000 quando o advogado Antonio Luiz Fontela publicou “Memórias de um descasado”.

O autor já escreveu para diversos periódicos. Sua coluna “Uísque com guaraná” no “Jornal da Cidade” fez história. Na página da web Recanto das Letras, ele já publicou 120 textos. A estreia em livro se deu aos 54 anos, com este romance que co-mentamos hoje.

“Memórias de um descasado”, como o título já deixa transparecer, são as recordações bem-humoradas de um advogado divorciado, o dr. Luís. Focalizando as relações amorosas, suas e de seus conhecidos, desde as primeiras experiências até os casos extraconjugais da maturidade, o romance por vezes chega a ser despudorado.

E é nesse tom que o narrador reconstitui a sua vida, munido de um senso de humor que não poupa nem a si mesmo, lembrando em alguns aspectos narradores oswaldianos.

O primeiro capítulo, memorável, é uma síntese de sua vida de casado. O dr. Luís, que está fazendo aniversário, é cumprimentado pela mulher e os dois filhos logo ao acordar e, à noite, pelos amigos numa casa noturna.

Tudo vai bem até que ele sente, por debaixo da mesa, “uma mão percorrendo a minha genitália”, prenúncio da crise conjugal e da separação, que ocuparão o restante do livro.

Mas a história não se resume a isso. Aparentemente despretensioso, como quem conta seu dia a dia numa roda de chope, o dr. Luís vai habilmente costurando seu drama a memórias de infância e adolescência. Surgem então a rígida formação católica do colégio Marista, os amigos que ele manterá por toda a vida e o pano de fundo de uma cidade conservadora.

As cenas vão brotando uma atrás da outra, encadeadas de forma ágil. E os diálogos bem construídos – raridade em nossas letras – ajudam a manter o tom de galhofa.

O universo é tradicionalmente machista. Tanto o dr. Luís quanto seus amigos têm necessidade de um caso extraconjugal, de uma transa. “Não sei se pode se chamar isso de traição ou satisfação de uma necessidade”, ouve-se numa conversa entre eles. E a justificativa é quase sempre a mesma: a falta de carinho das esposas.

As mulheres são objetificadas, descritas pela aparência física. E as crises matrimoniais empurram os maridos para as mesas de bar, as boates e os braços das amantes.

Mas os personagens masculinos não se dão conta de que os tempos estão mudando, e é aí, como retrato de uma época, que o romance ganha força. As mulheres já não aceitam caladas a submissão, o papel exclusivo de esposa e mãe dedicada ao lar. O leque de personagens femininas então vai ganhando complexidade.

Como os anos 1970 são marcados pela regulamentação do divórcio, começam a pipocar os pedidos de separação, que o dr. Luís experimenta também como advogado. Ao fim, o solitário e já cansado narrador se dá conta de que não quer ser um Bentinho, que ele mesmo já condenara. Mas, tal como o personagem machadiano, não escapa das reflexões, que atam as pontas de sua vida neste “Memórias de um descasado”.

* Huendel Viana é mestre em Teoria Literária pela USP. Publica esta coluna quinzenalmente, às quartas-feiras, no Jornal da Cidade. E-mail: caixazul@yahoo.com.br