Que Horas Ela Volta? é tapa na cara da sociedade

Que horas ela volta?, que chegou a ser indicado como representante brasileiro no Oscar

Avaliação do Editor

9.0
Avaliação 9.0

O crítico Marcelo Leme comenta sobre Que horas ela volta?, que chegou a ser indicado como representante brasileiro na categoria Melhor Filme Estrangeiro do Oscar 2016.

Nosso cinema traz vários filmes que exploram barreiras sociais. Que horas ela volta?, obra causadora de certo frisson, não é só mais um deles! Escancara o Brasil e sua segregação com fineza e delicadeza. Não é só porque traz uma crítica social muito bem embasada que esse é um grande filme, mas como faz a critica, como usa de artifícios do cinema e de seus recursos em benefício da provocação e comoção. O filme provoca! O filme comove! O filme diverte! O filme te dá um tapa na cara!

Val (Regina Casé em estado de graça) cuida da vida de uma rica família paulistana. Essa família é formada basicamente por um casal e seu filho. Val veio de Pernambuco a fim de ser babá de Fabinho. Com ele conviveu por muitos anos, tornando-se referência dentro da casa onde sua invisibilidade só não é total porque precisa-se de alguém para servir sorvete. O roteiro consistente demarca aspectos de valores sociais e morais, investe símbolos sutis, explana desigualdades. Até um simples jogo de xícaras representa formas de exclusão/inclusão. A sutileza da trama sensibiliza e enriquece a narrativa.

Filme chegou a ser indicado como representante brasileiro no Oscar 2016
Filme chegou a ser indicado como representante brasileiro no Oscar 2016

As barreiras sociais são simbolizadas por limitações dentro do filme, como o quarto pequeno de Val, as sombras oriundas da janela que dão impressão que ela está atrás de grades. Sua postura num primeiro instante é naturalizada. A dinâmica das relações na casa onde trabalha demarca diferentes e dissonantes esferas sociais, entendidas como inerentes às condições de mérito. O abismo nunca é questionado, até o ponto em que uma outra personagem chega e altera completamente a rotina. Outra dinâmica se constrói a partir de uma intervenção pessoal. A subversão dos valores afunda na piscina.

Dois pontos reverberam no longa: o antes e depois da chegada de Jéssica. Jéssica é filha de Val, seguiu os passos da mãe e mudou-se para São Paulo. Seu interesse é o vestibular. Irá prestar vestibular para arquitetura. Analista e lúcida, traz na bagagem a orientação de um professor que a inspirou a lutar pelo que acredita e nunca curvar-se. O primeiro ponto do roteiro está na forma com a qual nos apresenta Val, o quão ela pertence à casa onde trabalha; o segundo ponto demonstra o quão ela não pertence àquele lugar quando sua filha questiona tudo por curiosidade, segundo a própria. A presença da garota subverte todas as concepções embasadas dentro daquele núcleo de relações.

Alguns planos são virtuosos, como aquele em que vemos Val subir no ônibus. Nossa ótica está do lado de fora da condução. Destaco também alguns planos longos, como a conversa entre mãe e filha dentro de outro ônibus. A cena trava o potencial das atrizes, com Regina Casé em um papel que tanto lhe caiu bem; e a promissora Camila Márdila, talentosíssima, que rompe com paradigmas e é responsável pela injeção no filme. Um momento em especial o qual compartilhamos do constrangimento cênico demonstra o talento da jovem atriz em naturalizar sua personagem: quando é questionada sobre a razão de ter escolhido o curso de arquitetura, ri inibida, como se tal pergunta lhe fosse um insulto.

Essa é a inexorável obra de Anna Muylaert, direta e concisa, bem dirigida e ciente do que pretende ser; há por que e pelo que existir. Artisticamente é irrepreensível, talvez tenha excessos narrativos, mas nada que prejudique o valor de sua história e as intenções de seu argumento. Que horas ela volta?, além do mais, é um expoente dramatúrgico. Dialoga com todos os públicos e incendeia discussões consideráveis a respeito de seu papel dentro do âmbito cinematográfico brasileiro. É possível que torne-se uma referência dentro do cinema nacional. Os anos dirão.

* Marcelo Leme é crítico de cinema e psicólogo