Polícia e bandidos
O jornalista Daniel Souza Luz escreve crônica onde relembra das brincadeiras de polícia e bandidos durante os tempos de infância.
As perseguições eram velozes. Mais do que as de carros dos filmes e seriados policiais. E eram reais. O pátio do colégio era uma terra com lei.
Havia um acordo tácito, uma regra não escrita, como nas prisões – e olhando retrospectivamente, aquele pátio parece com o de uma penitenciária, como o da maioria das escolas – que era honrada por todos os que participavam da brincadeira: revezava-nos entre polícia e bandidagem.
Num dia, na hora do recreio, se era polícia, no dia seguinte se era bandido. O corredor do portão era a delegacia. Em frente ficavam uns poucos carcereiros, guardando quem fora pego. Toda a extensão do pátio era permitida para quem se punha em fuga.
Quem ficava como polícia saía atrás dos bandidos num furioso pega-pega. Às vezes rolavam trombadas com inocentes e garotas que não tinham nada a ver com aquilo. Danos colaterais, como na vida real.
As professoras não gostavam nada daquela correria, reclamavam de chegarmos suados após o intervalo, mas não houve nenhuma medida para coibir a brincadeira, ao menos que me lembre. A pena para quem era pego era não poder mais correr ao longo do recreio.
Ser pego logo no começo era duro, ficava-se preso ali todo o intervalo. E não havia fugas, todo mundo respeitava, pelo o que me recordo. Apesar de certa rivalidade entre as diferentes turmas, ali nos misturávamos na boa. Numa nice, como se dizia àqueles tempos. Talvez fosse o zeitgeist, o espírito da época, como dizem os alemães.
Era o começo dos anos oitenta numa sociedade cansada de ser sufocada pela ditadura militar. É engraçado ver gente com quem estudei dizendo hoje ser a favor de golpe militar porque sempre foi respeita-dor e correto. Pura hipocrisia, estes eram os mais desrespeitosos com professores e também pouco estudiosos à época.
O fato para o qual aponto a ocorrência do espírito daqueles tempos, no entanto, é que ninguém queria ser polícia não, fossem CDFs ou bagunceiros. Correr livre era o que todos desejavam. Aceitava-se o papel de policial apenas para a brincadeira ter sentido, com o revezamento sendo estritamente respeitado.
Um dia, no entanto, senti o peso da injustiça. Havia sido polícia no dia anterior e estava ansioso para ser bandido para correr à vontade. No entanto, se confundiram e me fizeram ser policial num dia seguido ao outro. Se foi por mal é certeza que é alguém que hoje em dia apoia intervenção militar.
Fiquei tão desanimado dei mais uma de carcereiro mesmo. Não me esqueço: quando todo mundo saiu de perto, um cara de outra sala veio e me disse que lembrava sim que eu já tinha sido polícia no dia anterior, mas que não quiseram escutá-lo.
O reconhecimento da injustiça serviu como reparação e me animei a desempenhar meu papel e saí caçando bandidos pátio afora. Ainda vejo esse colega por aí na rua às vezes, nunca mais conversamos, mas aposto que ele é contra um novo golpe de milicos.
Posso perder, pois uma de minhas histórias em quadrinhos recentes favoritas é uma tira dos Malvados, do André Dahmer, no qual um personagem encontra um amigo de infância e fica super feliz, sem saber que ele havia se tornado nazista, pois o amigo veste uma camiseta com uma suástica nas costas. Então evito puxar conversa, não quero me decepcionar, vai que…
* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com