O som

O jornalista Daniel Souza Luz escreve a crônica O som, sobre a arte de descobrir o nome de músicas através do crédito de filmes.

Fragmentos, alguns acordes. Meros segundos, eventualmente. Já bastava para identificar a melodia. Com a escassez de acesso cultural nos anos oitenta, ainda mais no interior, quaisquer trilhas sonoras de filmes, vídeos e trechos de músicas em rádio traziam palhinhas deliciosas. Graças a isso, desenvolvi um hábito que muitas pessoas notam e acham curioso.

Sempre, ou quase sempre, atento-me aos créditos finais dos filmes dos quais gosto. Trazem-me informações preciosas de pepitas musicais escondidas. Aprendi isso com a trilha do home video do programa de skate Grito da Rua, que passava na TV Gazeta. Até aí tudo fácil. Em termos, pois achar discos e fitas das bandas depois era difícil demais.

Ou geralmente não tinha dinheiro, quando achava. Mas ao menos sabia do que se tratava. Duro era quando não havia a informação, quando ouvia algo bom sem que houvesse crédito. Ou quando ainda era ingênuo demais para saber sobre os artistas estarem creditados nas obras.

Dias atrás, meu amigo Paulo Augusto Rodrigues, conhecido desde a infância e vizinho lá da rua Platina, estava me lembrando do anúncio televisivo sobre o início do horário de verão, restabelecido no país na virada dos anos oitenta para os noventa. Descobrimos, tempos depois, por acaso, que a excelente música de fundo, cujo nome agora me escapa, era do primeiro disco da banda australiana Midnight Oil, quando finalmente pusemos nossas mãos nele, no início dos anos noventa, doze anos após seu lançamento. Foi inesquecível a primeira vez a que assisti ao filme Depois de Horas, ainda garotinho.

O protagonista, um cara tipicamente yuppie oitentista, vai procurar uma garota num clube punk. Fiquei empolgadíssimo com a música, nunca tinha ouvido algo parecido; era rápida demais, muito mais do que as bandas punks que conhecia até então. Procurando pelo filme, anos depois, descobri que a minha introdução ao hardcore foi a melhor possível: a música é a versão original de Pay to Cum, do Bad Brains.

Gosto mais da regravação, mas esta versão é precisamente o som que criou a cena hardcore! Houve outro grupo antes deles, o Middle Class, que é fascinante, mas era obscuro, enquanto que o Bad Brains influenciou tudo o que veio depois. Não bastasse isso, naquele trecho o diretor do filme, Martin Scorsese, um gênio do cinema, faz uma ponta como o iluminador do show. Notei isto já adulto. Que momento mágico eternizado é aquela cena para mim.

* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com