Maria

Abr 8, 2025 - 11:20
Maria

- Senta, Maria, ele não volta.

 O olho, as pernas e os braços roxos denunciavam a ação do marido. 

 -Maria, ele não volta. O povo do Capão está dizendo que já deve ter comido poeira a galope. O coronel não aceita desonra de dívida.

Maria, no silêncio obstado,  começou a fazer o jantar. Os filhos pequenos, assustados, espreitavam a mãe. Ela lançou um olhar demorado para a casa, para as panelas, para o curral e para o  terreiro ainda com café para secar. 

Virou a gamela e viu seu reflexo. As sardas no rosto, o cabelo escuro,  a boca igual a da mãe. Pensou muito na mãe, dicuiando o sabão de cinza, colhendo paina para os travesseiros, fazendo as rezas e benzendo o povo. 

Lembrou do pai severo e da obrigação de matrimônio com o primo do São João Batista. Povo ruim do Douradinho. 

Gente sem tenências nem governos. Deixou a casa em tratativas apressadas, firmadas em horas de um dia.  Sem tempo para se despedir dos cômodos, do paiol, dos bichos, das criações. 

Os irmãos chorando, agarrados ao seu bornal e o pai satisfeito em firmar acordo de terra com parente. Sorvia o café com o tio e olhava de soslaio pela janela como se ela fosse uma rês amiudada, de pouco valor. Sentira-se rustida por dentro, retalho da bainha...sobras de costura. 

A mãe, com olhar triste, batia os pés com força no pedal da máquina para terminar a aná-gua e o véu da Igreja. Fincou na soleira da porta. 

Não teve tempo de lhe entregar. O povo ao pé da Igrejinha, o vestido de gabardine da prima e um ódio vencido, conformado de posar para a única foto que tirara na vida com um homem pelo qual nutria desprezo. 

Violento, com voz de mando e reio sempre à mão, comprazia-lhe machucá-la pelas horas e sem motivo. Guardou a gamela. 

 - Maria? 

Maria voltou a si. Despediu-se da vizinha. Caminhou até o paiol, retirou com cuidado a espingarda afundada no balaio de sabugos. 

O ruído da noite não lhe metia medo. Sentia-se pela primeira vez em conforme com as coisas, em algum lugar nos certos. 

Guará na beira da mata. Pendurou a arma atrás da porta. Fechou as tramelas. Pensou no marido caído na última fileira do cafezal. 

- Ele não volta.

* Lidiany Oliveira Chianello é professora na UEMG Poços de Caldas

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