Leiteiros Mortos

O jornalista Daniel Souza Luz escreve crônica sobre a banda Dead Milkmen

No início dos anos noventa um amigo que se mudou para os Estados Unidos, o Márcio de Melo, me mandou uma Thrasher, a mais importante revista de skate, pelo correio. Devorei a edição. Consegui achar mais uma ou outra em bancas de Poços de Caldas, depois.

Nelas sempre via os anúncios de CDs e camisetas de bandas, além de ler as resenhas de shows e entrevistas, fora as reportagens sobre skate em si. Naquela primeira edição que me foi enviada li pela primeira vez uma matéria sobre o Flipper e me acostumei a ver o logo, nos anúncios, de um grupo com o qual logo simpatizei, o Dead Milkmen. Além do nome engraçado, o símbolo era uma vaquinha sorridente.

Mas fora uma ou outra menção, não sabia nada sobre eles. Só supus que era bacana. Nas primeiras vezes que acessei a internet, em 1997, na Unesp, cadastrei meu primeiro e-mail e numa ferramenta de buscas já extinta, o Cadê?, procurei informações sobre bandas e gravadoras independentes sobre as quais queria saber mais, afinal produzia e apresentava um programa de rock alternativo na rádio universitária, o Programa Pirata.

O acesso à web na época era bastante restrito no laboratório de informática, mas me foi concedido com essa justificativa. Além das bandas que efetivamente programava, no meu tempo disponível lia sobre outros grupos, aí finalmente soube um pouco sobre o Dead Milkmen.

Era uma banda satírica com uma carreira prolífica nos anos oitenta e que ainda esteve na ativa naquela década de noventa, lançando discos mais espaçadamente, havendo recém-encerrado as atividades. Mas ouvir mesmo era outros oitenta – mesmo não estando mais naquela década e sim nos anos noventa, não era tão fácil assim encontrar material; na web 1.0 então, fora de questão.

Aí que vem a surrealidade. Na virada dos anos 1990 para os 2000 fui passar um final de semana na casa da minha avó e do meu avô, em Botelhos, aqui do lado, e sonhei que tinha achado um CD do Flipper numa lojinha de lá. Acordei e confiei no instinto do sonho. Saí pela cidade procurando sebos ou lojinhas de CDs e achei uma, que obviamente não existe mais, na praça da matriz.

No meio de vários CDs populares à época lá estava perdido um do Dead Milkmen, o Beelzebubba, de 1988. Nem precisei pensar muito. Não teve erro, não tinha muito a ver com o Flipper, não era aquela barulheira toda, mas era tão maravilhoso quanto. O som é uma mescla de skate rock, punk, funk, country, rockabilly, folk e o que mais couber na zoeira, com letras sarcásticas e geniais.

Às vezes, mal comparando, lembra um pouquinho um Red Hot Chilli Peppers com menos peso, sonoridade mais abrangente e um vocalista estrídulo. A minha suspeita de ter ido parar naquela loja é que a capa sugere um disco de country music e quem o comprou se decepcionou, dando um jeito de se livrar do CD. Letras como Brat in the Frat, Stewart e Tiny Town (esta, do primeiro disco, de 1985) tiram sarro impiedoso tanto da elite liberal de Harvard como também de conservadores empederni-dos e racistas – especialmente destes últimos.

Como Jello Biafra, dos Dead Kennedys, o vocalista Rodney Anonymous eventualmente incorpora-os ironicamente na primeira pessoa, como se fosse um populista desbocado, dizendo os maiores disparates sem quaisquer escrúpulos. Que bom que a banda voltou a tocar e ainda lança material inédito, pois a postura permanece atual nestes tempos em que suas nêmeses estão no poder ou com chances de abocanhá-lo.

* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com