Conto: Fome e vontade de comer

Era o primeiro dia do mês e dona Maria estava num misto de alívio e felicidade, pois na fábrica de peças automotoras em que ela trabalhava, o salário era sempre pago neste dia, e não no quinto dia útil, como na maioria dos outros locais.

O dinheiro do mês passado já havia acabado e ela não sabia mais o que fazer para por comida em casa. Eram três crianças, com idades entre 5 e 10 anos, cuja fome não esperava. Por volta de nove da manhã, dona Maria, que trabalhava como auxiliar de cozinha no refeitório da fábrica, foi chamada no RH.

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Só que quando chegou lá, não era para assinar o holerite. Era para ser comunicada que devido à crise, a fábrica estava passando por um processo de corte de funcionários. O setor dela, inclusive, seria todo terceirizado, pois consideravam que haveria economia com os gastos. Dona Maria ficou incrédula.

Não sabia o que dizer e nem como reagir. Amparada pela jovem que lhe deu a notícia, ouviu tudo sobre direitos que iria receber e acabou assinando a rescisão. Foi para o vestiário, pegou suas coisas e voltou para casa. As crianças ainda estavam na escola.

Pelo menos, não veriam o desespero da mãe pela perda do trabalho. Mais tarde, já um pouco recomposta, foi à escola pegar os filhos. Voltaram para casa em silêncio. Sem o salário da fábrica, as coisas ficariam realmente complicadas caso ela não arrumasse outro serviço.

O fundo de garantia, que ela já havia sacado anteriormente, foi bem menos do que esperava, o seguro desemprego era menor do que o salário e tinha data para acabar. O jeito foi apertar os cintos, cortar despesas e sabe-se lá mais o que desse para fazer.

Enquanto os filhos estavam na escola, dona Maria corria a cidade entregando currículos em todos os lugares possíveis. Mas as coisas estavam difíceis. As empresas estavam mandando gente embora a rodo, ninguém mais estava contratando e o dinheiro circulava cada vez menos.

Quando o seguro desemprego acabou, o desespero bateu. Restaurantes e lanchonetes não estavam contratando. Fazer quentinha em casa exigia um investimento mínimo, que não era possível no momento. Dona Maria então partiu para trabalhar como diarista.

Conseguiu alguns trabalhos, mas a renda nem sempre completava um salário mínimo. Com aluguel e contas de energia e água nas alturas, as coisas pioraram quando a comida começou de fato a rarear. Não dava mais para comprar carne como antes.

Arroz, óleo, macarrão e feijão tinham disparado de preço. “O que aconteceu, meu Deus?”, pensava. O jeito era comer menos para não faltar para os filhos. Num dia, quando foi fazer faxina em uma casa do bairro, encontrou um livro de receitas sobre reaproveitamento de alimentos. Na prática, ensinava o que fazer com sobras de comidas.

Perguntou se a patroa poderia emprestar o livro e o levou para casa. Foi providencial. Quando as crianças começaram a reclamar da falta de carne, dona Maria apresentou a elas o “bife de banana”, feito de cascas, farinha de trigo, farinha de rosca, ovo e alho.

No começo, elas ficaram desconfiadas, mas depois se acostumaram. Dona Maria depois preparou uma “farofa de casca de melão”, tudo reaproveitado da xepa da feira do bairro. Com a mão boa para a cozinha, surgiram ainda bolinhos com sobra de arroz e um delicioso doce de casca de laranja.

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As crianças comiam com gosto e satisfação. Uma vez por semana, dava para preparar um sopão de miúdos de frango com canjiquinha ou fubá. O que sobrava, era guardado para o outro dia. A situação estava longe do ideal, mas era o que tinha. As crianças pelo menos estavam alimentadas e a refeição que faziam na escola ajudava a minimizar a fome.

Mas não era apenas a Dona Maria e seus filhos que passavam aperto para comer. Na rua em que moravam, todo mundo estava desempregado e passando muita necessidade. Foi então que ela teve a ideia de compartilhar o que aprendeu. Conseguiu emprestado o centro comunitário e reuniu os vizinhos.

No encontro, preparou alguns pratos que fazia em casa, sempre com sobras e alimentos reaproveitados, tudo muito simples, mas gostoso e nutritivo. Todos ficaram maravilhados. Alguns não seguravam a emoção. “Menina, foi Deus quem te mandou”. Muita gente se interessou em participar das reuniões.

A cada semana, vinham mais e mais pessoas para apreender a cozinhar com alimentos reaproveitados. Para surpresa de dona Maria, uma ONG patrocinada por uma empresa estrangeira a chamou para levar o projeto para outras regiões da cidade que enfrentavam o mesmo problema.

Na prática, ela tinha de novo um emprego formal. Com salário, carteira e direitos trabalhistas. Dona Maria não estava apenas compartilhando o que fazer para lutar contra a fome. Estava compartilhando esperança.

* João Gabriel Pinheiro Chagas é jornalista e diretor do Jornal da Cidade. E-mail: joaogabrielpcf@gmail.com