Dezembro no bairro

Dezembro no bairro é o nome de um ótimo conto da Lygia Fagundes Telles. É mais sombrio do que parece a princípio, mas, devido ao título, acaba evocando-me lembranças ternas que gostaria de externar nesta crônica afetuosa.

Em verdade, já falei sobre o episódio há dois anos, numa crônica natalina chamada Papai Noel, Velho Batuta, inspirada na já clássica canção do Garotos Podres. Porém, gostaria de esmiuçá-lo. Trata-se da ocasião em que meu pai, falecido no início deste mês, nos levou num Natal para passear, no centro de Poços, na caçamba da sua pequena camionete.

Foi destas típicas oitentices hoje celebradas em memes, mas que, vistas retrospectivamente, são pura irresponsabilidade, ou seja, crianças e adolescentes precariamente soltos dentro de um veículo em movimento. No entanto, isto era socialmente aceitável à época, lembrem-se. Aliás, creio que legalmente permitido também. Não era obrigatório sequer o uso de cintos de segurança.

Eu mesmo me sentia constrangido em usá-los, embora meu pai comprasse a revista Quatro Rodas todo mês e eu, por as ler assiduamente, sabia da necessidade de usá-los. Só me encorajei a sempre os pôr depois de tirar carteira de motorista, anos antes da obrigatoriedade, estivesse dirigindo ou fosse passageiro, e ainda havia quem tirasse sarro de mim.

Enfim, naquele Natal de 1987 ou 1988, não sei precisar bem qual, eu, meu irmão Eurico, minha irmã Fernanda e alguns amigos fomos dar aquela volta pelo centro da cidade, livres na caçamba da camionetinha. Não me recordo mais com precisão quem estava junto, mas creio que eram a Ana Karla Rodrigues, sua irmã Ana Paula, mais novinha e amiga da minha irmã, seu irmão Paulo Augusto, mais chegado de mim e do meu irmão, e o Daniel Capitanini Zingoni, infelizmente já falecido.

Talvez houvesse mais gente conosco. Todos eram nossos vizinhos. Mais do que os enfeites de natal, as pessoas na rua ou mesmo a companhia, a brisa fria no rosto e a sensação de liberdade foram as marcas que ficaram em mim desta noite.

O carnaval, para a maioria dos brasileiros, é que representa dias de libertação. Isso até já aconteceu comigo, mas quando eu já tinha mais de trinta anos. Antes, não gostava muito, inclusive. Aliás, não apreciava nem um pouco. Já o Natal, aí sim.

Foram dias em que me libertei das limitações de criança ainda impostas para mim, já pré-adolescente. Recordo-me de amigos que alguns amigos, o Evandro Godoy e o Márcio de Melo, iam dormir na casa um do outro e podiam jogar Atari até tardão da noite. Isto era vedado a mim e meus irmãos. Mas foram nas noites de Natal que nos foi permitido ficar até a meia-noite na rua, pela primeira vez, até porque as famílias estavam preparando as ceias e não havia razão para ficássemos em volta pentelhando-as.

Foi a primeira vez que pude ficar sentado na calçada conversando à vontade sob o céu noturno; embora até pudéssemos afastar-nos da rua Platina e nos aventurar pelo nosso bairro, o pequenino Marçal Santos, nem era algo que interessava tanto naquele mo-mento.

Estar ao ar livre tão tarde já estava ótimo. Não bastasse a liberdade até então inédita, também algum canal de TV que não tinha o hábito de assistir, creio que a Bandeirantes, passou num daqueles feriados natalinos no fim dos anos 1980 um desenho do Asterix. Era ótimo poder assistir desenho animado tão tarde da noite, muito antes de existir Cartoon Network, Tooncast e assemelhados. Aqueles natais foram o fim da infância, mas sem a perda da inocência.

* Daniel Souza Luz é escritor, jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com


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