Violeta de outono
O jornalista Daniel Souza Luz escreve crônica onde relembra dos jogos de truco durante a adolescência
Corríamos de volta para casa. Depois da aula havia pressa de viver. Normalmente andávamos rápido – às vezes devagar, falando alto grandes bobagens que irritavam quem passava por perto, despertando-os da indiferença maquinal – para chegarmos logo e almoçarmos.
Hoje sou eu quem fica irritado com adolescentes gralhando. Bem feito pra mim. Após o almoço quase ninguém tomava banho. Nem suávamos muito. Já estava ficando frio e a mata que margeava a avenida Champagnat, pela qual voltávamos, bafejava seu hálito gélido sobre nós. O que fazer? Truco valendo grana.
Na rua. Aposta com dinheiro é crime, meu pai já havia ensinado; aliás, também nos ensinou que por lei quem paga, curiosamente, não podia pedir o dinheiro de volta depois. E se a polícia ou o comissariado de menores passasse na rua? Corre. Corremos o risco. Nem precisamos correr, não teve nem sinal da Cida Caselli ou qualquer outro comissário de menores. Ninguém sabia jogar pôquer.
Então foi truco mesmo. O dinheiro apostado: notas amassadas de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e principalmente Machado de Assis, o qual não valia quase nada nas nossas carteiras e mentes. As cédulas tinham carimbo de cruzado novo. As outras eram valiosas demais para nós, pirralhos que éramos. Apostávamos ninharia, apenas pelo prazer de fazer algo proibido, mas que não tinha nada de mais.
Pelo fato de me lembrar dessas notas da época de hiperinflação, deve ter sido em 1989. Ou seria 1988? Enfim, a literatura já era desvalorizada… Recordo-me que também jogamos em casa. Por comodidade, não por medo de dar rolo. Sequer estava valendo dinheiro. Só tinha graça correr este risco na rua. Acho que estavam presentes eu, meu irmão Eurico e nossos amigos Fred Pinheiro, Paulo Augusto Rodrigues, Márcio de Melo e meu xará Daniel Capitanini Zingoni.
Tem uma regra importante. Sei lá se universal, talvez só exista no truco mineiro, que é diferente do paulista, por exemplo: não pode gritar truco nem dar seizada se uma dupla faz 14 pontos (no truco mineiro, são 15 pontos para ganhar; no paulista, 12) e começa a “namorar”, ou seja, quando podem ver as cartas um do outro para saber se vale a pena ou não jogar naquela rodada. Gritou, perdeu.
Retrucou com o seis, roda junto. Ou não, sei lá. Essas regras são meio mutantes. Tinha uma dupla de fora esperando para entrar. Não lembro quem estava de dupla comigo, mas o Daniel era da outra dupla, que estava ganhando com folga e chegou nos 14 pontos. Então acontece o inacreditável. Meu xará soltou um truco com gosto; grita e sobe na cadeira, triunfante. Ficamos atônitos. Ele não. Até repete.
– Truco!
– Você não pode trucar! Tá com quatorze!
– Esqueci! – murchou.
Gargalhamos a ponto de faltar ar, menos meu xará, que, derrotado, abre a porta e vai embora chorando. Saca-nagem, não é o que queríamos. Foi espontâneo. Ninguém quis jogar mais, embora tivesse outra dupla. Depois dessa, pra quê?
* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com