República selvagem

O jornalista Daniel Souza Luz relembra das eleições diretas para presidente, em 1989, quando era adolescente.

Com a redemocratização, propostas de censura, caso apresentadas no fim dos anos oitenta, como o asqueroso Escola Sem Partido, jamais prosperariam, tamanha era a sanha para enterrar o passado autoritário do Brasil.

Nas eleições presidenciais de 1989, a primeira após a deletéria ditadura militar que desgraçou o país entre 1964 e 1985, somada à besta do Sarney, eleito indiretamente, houve um debate na minha sala sobre os candidatos à presidência. Sim, se discutia política normalmente na escola e eu estava apenas na oitava série.

Ninguém via nada de mais, até porque não havia nada de errado mesmo, naquele contexto de liberdades recém-conquistadas. Nem participei do debate, não estava interessado, mas achei algo absolutamente corriqueiro; a democracia liberal estava de volta.

Antes que os Torquemadas do neofascismo ora corrente impeçam novas eleições, haja vista o mau-caratismo recorrente de pedidos de “intervenção militar”, e tolham novamente a liberdade de expressão, compartilharei minhas memórias daquelas eleições de 1989.

Em primeiro lugar, já tinha consciência do que era anarquismo e simpatizava era com o voto nulo e a destruição do Estado. Obviamente, da forma mais adolescente e irresponsável possível, tinha 14 anos. Ria demais do Enéas e do Marronzinho no horário eleitoral, dois sujeitos bizarros.

Tirando as patifarias do Collor e estes dois, os demais candidatos me pareciam mais ou menos sérios, recordo-me de todos eles, acho: Afif do PFL, Covas do PSDB, Lula pelo PT, Maluf pelo PDS, Ulysses Guimarães do PMDB, Brizola do PDT e Roberto Freire pelo PCB. Não me lembro se o PTB, o outro grande partido da época, teve candidato.

Como já disse, não estava muito interessado, ainda não votava, mas é claro que acompanhava a “festa da democracia”, como se dizia. Ao nosso modo, é claro. Eu, meu irmão Eurico, nossos amigos Márcio Melo, Evandro Godoy e Maurício Rodrigues (este, já falecido) vimos na edição brasileira da revista MAD um manual de como sacanear os candidatos.

Um dos ensinamentos era recortar os colantes do Collor, Lula e Maluf e formar o candidato idiota ideal, o “Mulla”. Já tínhamos os colantes do Maluf e do Collor. Quando um carro do PT passou na rua Platina, a do prédio onde morava, jogando panfletos e colantes do Lula, nosso vizinho Tadeu Ranauro, que era sindicalista, ficou nitidamente feliz quando nos viu recolhendo, exultantes, os colantes; ele mal sabia que finalmente conseguimos completar a colagem do Mulla, que realmente fizemos e saímos colando por aí.

Quando nos mudamos do predinho, em 1993 ou 94, já havíamos o tirado da janela, mas a marca do colante ainda era visível. Fico imaginando o que se passou pela cabeça do novo proprietário ao ler aquele “Mulla” no vidro. Não fui ao famoso comício do Collor no centro, um showmício com um artista muito popular, parece que o Luiz Caldas.

Disseram-me que seria muito baixaria. Mas um dia, na única vez na vida em que saí da escola e fui andar no centro em vez de ir pra casa almoçar, estava caminhando na Assis com meu amigo Cleiber Pomárico Filho quando nos deparamos com o final do comício do PT, do qual não sabíamos.

Em frente ao antigo Bemge, que ainda existia, Lula desceu do caminhão de som, bem ao meu lado. Ele não me viu. O que me marcou foi que vi sua mão enquanto ele descia pela escada e senti pena ao notar apenas quatro dedos numa delas; não me recordo se já sabia do acidente de trabalho dele. Muito engraçado foi o comício do Maluf.

O pai do Maurício, Armando, que então era o dono da loja Atacadão dos Doces, nos convidou para tirarmos sarro do Maluf. Topamos, claro. Armando, que morreu meses atrás, era paulistano e parecia ter uma relação de amor e ódio com o Maluf. Fomos até o aeroporto e ele parelhou seu carro com a carreata do candidato do PDS.

Ele pediu para que eu, meu irmão, Maurício e mais alguém que estava conosco, talvez sua filha Renata (também precocemente falecida), gritarmos das janelas do carro: “Maluf, me dá um quibe!”. Eita humor oitentista! Obedecemos e toda vez que gritávamos isso Maluf acenava e sorria com a sua lendária cara de pau. Nós gargalhávamos.

Quando a carreata chegou à Urca, Armando foi assistir à lábia palestrante de Maluf, parecendo muito interessado, e fomos andar de skate ou fazer outra atividade mais proveitosa. Até hoje aquela eleição me surpreende. Meu pai era brizolista, filiado ao PDT, antes de entrar para o PMDB – que hoje conspurca a sigla MDB.

Não gostava do jeito populista de falar do Brizola, mas meu pai o adorava, sempre ressaltava que ele havia combatido a ditadura. Soube há pouco tempo que seria no nosso apartamento onde Brizola almoçaria, quando viesse fazer seu comício em Poços. Minha mãe, constrangida pelo acanhamento do espaço, vetou o desejo dos pedetistas e do meu pai.

Será que seria bacana ter almoçado com o Brizola àquela época, mesmo não suportando o jeitão dele? Acho que sim, imagina ele xingando o Collor de “filhote da ditadura” na minha casa. Nunca mais houve eleições tão divertidas como aquela.

* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com