Capitão América: Guerra Civil amadurece a franquia
Capitão América: Guerra Civil está longe de ser medíocre
Avaliação do Editor
O crítico Marcelo Leme comenta sobre Capitão América: Guerra Civil, que segundo ele, está além de ser um fast-food de sábado à noite e longe de ser um filme medíocre.
Há uma impressão de que a cada novo filme, a Marvel melhora. Será isso mesmo? Não, não é isso. A Marvel nunca fez um filme extraordinário, no entanto está se aproximando de tal realização. E quando digo filme extraordinário, refiro-me a um filme que não apenas deseje provocar alguma diversão até outro ser lançado com a mesma proposta. Também diz respeito a obra cujo intuito não seja somente vender seus personagens, numa natural e oportunista lógica de mercado. Tenho absoluta certeza que mais do que isso, o estúdio quer realizar importantes filmes. Ser relevante para o cinema e não usá-lo unicamente como ferramenta para guiar fãs e faze-los consumir tudo, indiscriminadamente.
Capitão América: Guerra Civil não é um fast-food de sábado à noite. Está longe de ser um filme medíocre, tal como alguns outros da mesma iniciativa são. É um filme com preocupações tangíveis, seja em sua técnica, no modo com o qual ela balanceia a ação recorrente; seja em seu roteiro, que deixa de ser um festival de piadas e abandona os convencionais estímulos-resposta para se dedicar a uma construção narrativa amadurecida, que exigirá que o público pense, e não que a obra pense por ele. Nessa linha, o filme cresce enquanto cinema, pois se debruça na arte narrativa, trazendo personagens bidimensionais e abrindo mão do maniqueísmo ordinário e limitado que assombra o cinema desse subgênero em construção.
No parágrafo anterior, exemplifiquei algumas características que julguei importantes. Sua técnica está entre os atributos favoráveis. Perceba como a estruturação da história altera-se comparada a dos outros filmes ao despir seus personagens de suas fantasias coloridas. Há um embate que inicia além do conflito corporal. É uma exploração política que mais tarde subsidiará as principais e tão aguardadas cenas de ação. E por quê o fato dos heróis estarem sem seus uniformes dá força aos embates posteriores, a guerra propriamente dita? Por identificação, por que a realidade é muito mais assustadora que a ficção. Por que a história do homem dá respaldo ao temor pelo real, pois este foi vivenciado e compreendido. É palpável e mensurável.
A partir disso, prepara-se um terreno fértil para a elaboração do arco do longa, que culminará nas lutas entre os heróis que aprendemos a torcer. A maioria deles teve filmes independentes que designaram suas personalidades. É bem verdade que, ainda que alguns sejam pífios, favoreceu nosso entendimento a cerca de quem são, de onde vieram e quais são suas motivações no cenário de guerra ambientado nesse Guerra Civil. A proposta é imersiva, tanto no uso da câmera, mais controlada e dirigida, fazendo com que entendamos o que está acontecendo em sua mise-en-scène; tanto no que diz respeito ao roteiro, no arco estruturado, demarcado por decepções, política e sentimentos. Balizado por vingança, o polo propulsor temático do cinema desde sempre.
Tony Stark está mudado. Steve Rogers igualmente. O primeiro é uma idealização do liberalismo do futuro numa concepção moderna. O segundo é a representação do conservadorismo do passado, trazendo valores que John Ford representou com maestria há décadas. Os papéis, aqui, se invertem? Ou se confundem? Esses papeis são transtornados em nome de algo (o resultado de suas ações heroicas no mundo) e alguém (o Soldado Invernal). O primeiro segue a linha política dos Estados Unidos, uma relação que enfatiza seu envolvimento militar duvidoso. O segundo, um personagem obscuro, oferece ambiguidades morais, reflexo da ação dos questionáveis heróis em sua volta.
Os dilemas morais estão bem desvelados. A direção dos irmãos Russo é competente ao segurar algumas situações e personagens, ainda que uma ou outra piada, ou uma ou outra vergonhosa frase de efeito, estoure no meio de outras precisas e pontuais. O humor não rouba a cena. Os tradicionais alívios cômicos residem propícios. O emaranhado de acontecimentos são claros, facilmente compreensíveis e bem planejados.
E note, é num filme do Capitão América que alcançamos a persona por trás da armadura do Homem de Ferro. Alguns diriam, esse é mais um Vingadores. Pode até ser, mas há um protagonista em evidência. Portanto, se é aqui que alcançamos definitivamente a complexidade de um personagem tão importante para a cultura pop, é por quê algo tocou seus realizadores, a fim de dignificarem alguém que em breve, felizmente, sairá de cena.
E os novos personagens? Um regozijo para a franquia. O Pantera Negra. O Homem Aranha. Ambos ótimos e até surpreendentes. Ambos tem tempo em cena o suficiente para se apresentarem. Divertem e impressionam. Mas é outra personagem que, particularmente, me chama atenção. Wanda, a Feiticeira Escarlate, vivida pela talentosíssima Elizabeth Olsen. Esta tem muito a oferecer a esse universo. E Daniel Brühl, brilhante ator europeu, garante um antagonismo ditado pelo talento em nuances. Sem máscaras, faz um vilão convincente e pertinente.
Nesse quadro todo, perceba: são os mesmos personagens, mas com outras derivações. A Marvel cresceu no cinema, entendeu a linguagem que difere de sua arte nos quadrinhos. Agora produz filmes que não morrem após uma simplória noite de sono, produz filmes que são capazes de inspirar outras histórias, propor reflexões acerca de distintos temas e levar seu público a aproveitar os recursos do cinema, imortais e atemporais. Que essa linha seja precedente.
* Marcelo Leme é psicólogo e crítico de cinema