Cabine C
O jornalista Daniel Souza Luz assina mais uma crônica sobre os tempos de infância
Cabine C é mais uma deliciosa crônica do jornalista Daniel Souza Luz sobre os seus tempos de criança em Poços de Caldas.
Não bastava o Atari. Era 1986, eu ainda não havia completado 12 anos. Meu aniversário é em novembro. Éramos crianças demais para um tumulto adolescente. Em vez disso, construímos uma nave espacial, eu e meu irmão mais novo, o Eurico. Não uma de brincadeira, mas uma na qual poderíamos voar.
Logramos a proeza dentro do pequeno apartamento onde morávamos, na Rua Platina, ruazinha com um único quarteirão pouco movimentado e ainda bonito de Poços. Foi uma obra de engenharia aeroespacial relativamente simples. Ou reengenharia.
Pegamos as cadeiras, fizemos uma armação empilhando-as, as cobrimos com lençóis sustentados por vassouras sobre elas e o armário e pusemos outras duas cadeiras em frente à televisão.
Tínhamos nossa cabine e nosso foguete era o jogo Beamrider. Um clássico dos videogames primevos, no qual naves alienígenas despontam no horizonte e aproximam-se atirando; nossa função era fazer manobras evasivas e contra-atacar, ou anteciparmos o ataque, até vencermos um grupo delas e partirmos para o próximo setor espacial.
Foi a melhor viagem ao espaço que fiz, mais divertida do que as dos livros infantojuvenis e filmes de ficção científica que havia lido e visto até então. Mais fascinante do que isso, à época, talvez apenas a série Cosmos na TV – a original, com Carl Sagan. Combatemos bravamente alienígenas cujas naves aceleravam a cada nova fase, disparando lasers cada vez mais fugazes.
Éramos bons o bastante e atravessamos vários sistemas planetários. Se já estivéssemos no futuro do livro O Jogo do Exterminador, de Orson Scott Card, certamente teríamos sido recrutados como combatentes espaciais mirins. Um amigo de infância, infelizmente não me lembro quem, dizia-nos que no final do jogo chegava-se à Terra.
Acho que não havia esse fim, mítico para mim, mas se houvesse, não a alcançamos a tempo, pois nossos pais chegariam antes. Desmontamos nossa nave antes de sermos abatidos pela eventual fúria terráquea deles. Ou seja, inventamos nosso próprio buraco de minhoca para retornarmos logo, despressurizamos nossos trajes e imediatamente estávamos de volta em casa. Quantos astronautas e cosmonautas não sonharam com isso naquele ano?
* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com