Artigo Quarto, Parágrafo Único
Dia após dia, numa prática quase litúrgica, fazia questão de deleitar-me na velha e aconchegante cadeira de balanço, herança de meu pai.
Com olhares sobre a campina, que se estendia desde a pequena Capela de Nossa Senhora de Guadalupe e acompanhava a descida do relevo até se encostar no alpendre de minha casa, habituei-me a contemplar a vida e a sonhar meus sonhos mais utópicos.
Quando os raios do Sol, distantes, encostavam-se sobre a serra, trazendo todo aquele arrebol, permitia-me verdadeiras divagações acerca de planos ainda presentes e dos mundos que idealizei.
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Certa vez, quando caminhava para este ritual, notei a presença de Augusto, meu neto. Estava sentado, com um olhar de difícil definição, senão perplexo. Com ele, havia um livro, cerne de todo o sentimento perpassado em seu semblante. Antes, devo retificar este início protervo em que não me apresentei, o que poderia erroneamente causar má impressão ao caro leitor.
Foi no Outono de 1903 que vim a este mundo, sendo o terceiro dos sete filhos do casal Francisco e Ana Rita. Um ano antes, papai e mamãe haviam escolhido a singela e charmosa Campanha, berço cultural da vida sul mineira, para se fixarem.
Comendador Francisco, como era referenciado, possuía fama de austero, mas tal atributo era facilmente refutado quando, dele, saiam as primeiras palavras em uma conversa. E nada se comparava ao acalento de mamãe, que se fez núcleo familiar por toda sua vida.
Bem, por lá cresci e muito aprendi, até me mudar para São Paulo em 1921, onde iniciei meus estudos em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito. Minha breve passagem pela Pauliceia, como aludia Mario de Andrade, proporcionou diversas memórias que guardo comigo até hoje.
E foi pelos estudos do Largo do São Francisco, concluídos com a Turma XCIV, que retorno ao solo mineiro e sou nomeado Promotor. Neste regresso, conheci minha grande companheira, Isabel, e confesso dificuldade em descrevê-la por tamanho amor; verdadeira devoção que sinto por ela.
Tivemos três filhos e uma filha: Estevão, Francisco, Geraldo e Helena. Em 63, próximo de aposentar, adquiri uma propriedade, distante cerca de duas léguas da Catedral de Santo Antônio, onde edifiquei a Quinta de Pindorama. Residi aqui desde então, até que as badaladas do Relógio da Vida me convidassem para uma nova jornada.
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Ao longo de todos estes anos, vi e vivi tantos fatos, hoje ‘históricos’, que geravam em mim certas reflexões. Posteriormente, as canalizei num livro no qual intitulei “Teoria do Limiar entre o Ontem e o Hoje”: Quando determinado acontecimento deixa de ser atual e passa a figurar nas páginas dos nossos livros enciclopédicos. Entretanto, permita-me, por ora, não ingressar nestes meus devaneios, pois não desejo fadigar tua leitura.
Meu nome? Linneu Ferreira Lopes.
Agora que já me alonguei pela apresentação, vale o registro: Meus caminhos jurídicos se entrelaçavam com os caminhos da literatura. Criei este hábito ainda jovem, quando fitava meus irmãos mais velhos, Moacir e Narciso, devorando os livros de nossa biblioteca.
E, assim, viajei pelos mundos literários: De Alighieri e Cervantes, passando por Dostoiévski, Kafka e Jane Austen, e chegando aos contemporâneos Salinger, Orwell e Umberto Eco. Mas minha predileção parecia mais com a frase “Um Tango argentino me cai bem melhor que um Blues”, tornando parte de meu acervo reservado aos escritores e pensadores nacionais e latino-americanos.
Estão presentes, evidentemente: Juan Rulfo, Júlio Cortázar, Pablo Neruda, Jorge Luís Borges, Gabriel Garcia Márquez, Miguel Asturias e os brasileiros Graciliano, Guimarães, Drummond, Lispector, Euclides da Cunha, Aluísio Azevedo, Hilda Hilst e Raquel de Queiroz. A coletânea Machadiana recebe o devido destaque na estante.
Fiz questão de preservar este costume e passá-lo aos filhos e netos, de modo que retornamos à Augusto, estarrecido no alpendre, e um livro de capa vermelha em suas mãos.
N’As Veias Abertas da América Latina, Eduardo Galeano conseguiu captar os séculos de usurpação colonial, de genocídio dos povos indígenas, de lançamento de um grande continente à margem do desenvolvimento social.
Desde a primeira leitura desta obra, passei a considerá-la uma espécie de Constituição latino-americana, em que seu povo deveria tê-la consigo sempre, e dali retirar suas bases principiológicas, seus valores sociais. Me acendeu, desde então, uma pujante esperança de que um dia a comunidade latina se encontre, se reconheça.
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A necessária leitura desta obra, por vezes, pode ser doída aos jovens de mentes sonhadoras. E Augusto era um deles. Meu neto havia iniciado os estudos em Direito, o que me proporcionava especial orgulho. Tornou-se comum passar, desde mais jovem, suas férias escolares conosco na Quinta de Pindorama, sendo companhia para leituras e conversas. Desta vez, com a voz mais reclusa, falou:
“Vovô Linneu, estou triste com o que acabo de ler. A história de um continente marcada por sofrimento e extorsão. E o modo como tudo se desenrolou acabou gerando uma segregação de um único povo. Sem falar em efeitos sociais, de pobreza, violência e golpes pelo poder, como o que estávamos vivendo. Quando estudamos, nas aulas de Geografia e História, parece que fazemos questão de segregar nossas histórias, nossa Cultura. Isto é irreversível, vovô?”
Estas poucas palavras lembravam às minhas, do jovem, ainda estudante, com entusiasmo às leis do homem, com a convicção de que elas seriam a chave para a transformação social e para a Justiça. Claro que, isoladamente, somos incapazes de alterar a realidade de nações, mas sempre acreditei que a convergência de ações seria resposta para muitos problemas.
Pois bem, diante de todo este cenário, regressei até meu escritório para buscar uma obra que cairia muito bem: A Carta Cidadã, ainda com poucos meses da sua promulgação. Recebi este exemplar do Senador Constituinte Itamar Franco, com quem mantenho contato desde o início de sua vida pública em Juiz de Fora. Seu nome é cotado já nesta primeira eleição presidencial, o que traz certa apreensão quanto aos arranjos políticos possíveis que ele pode se envolver.
Entreguei a Augusto, apontando para um trecho específico e pedindo que lesse em bom-tom. Pois, assim, o fez: “Artigo Quarto, Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.”
Uma frase é capaz de transformar nossas emoções. Por mais que esta, se afastasse de certa objetividade, era promissora, sobretudo por considerarmos a relevância do nosso Brasil nas relações e na economia deste grande continente social.
“Augusto, o que acaba de ler é um princípio fundamental do nosso país!”, disse com aqueles ânimos típicos meus. E, numa quimera, enxerguei meu neto em relevante papel para atingir este objetivo. Será, ele, um político carregando esta bandeira integracionista, numa espécie de Parlamento Continental? Rogo, aqui, meus desejos e, onde estiver, farei de tudo para que isto ocorra. Alea jacta est.
Senti que seria o momento ideal para propor certa aventura a Augusto. Como suas férias escolares já caminhavam para o fim, o convidei para organizarmos uma viagem em suas próximas férias; uma jornada por esta “comunidade latino-americana de nações”. De prontidão, ele topou, o que gerou grandes expectativas, fazendo com que passássemos os próximos quatro dias entre mapas e livros pelo meu escritório.
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Rotas traçadas, locais a serem visitados, datas definidas. Isabel foi a primeira a considerar uma insensatez, posto que em junho, já estaria com meus 86 anos. Claro que minha idade poderia ser algo preocupante, mesmo não tendo nenhum problema de saúde. Aliás, minha idade pouco impediu das caminhadas campestres, das viagens pelas Minas Gerais e, por que não, das minhas poucas peraltices.
Pois bem. Em um breve relato, até mesmo para não te fazer desistir aqui do que venho lhe contando, digo que fizemos uma rota pormenorizada. Três itinerários principais foram definidos como pilares, sendo: Ouro Preto/Rio de Janeiro, para compreendermos ainda mais o processo de formação e consolidação do Brasil como uma grande nação; Cuzco/Potosí, para assimilarmos da estrutura dos povos andinos e o processo de colonização local; e Teotihuacán/Yucatán, em que desvendaríamos o surgimento, grandiosidade e, o posterior extermínio dos povos mesoamericanos. Seriam 45 dias sublimes.
Preciso confessar algo: O brilho dos olhos de meu neto era resplandecente, só não era mais que dos meus. Em mim, renasceu uma grande expectativa! Já fiz diversas viagens, sobretudo quando meus filhos já estavam grandes o suficiente para se maravilharem com as belezas dos lugares.
Helena, mãe de Augusto, havia completado 12 anos quando fizemos nossa viagem em comemoração das bodas de prata, rumo à Buenos Ayres. Lembro do encanto dela quando estávamos na Plaza San Martín, diante do imponente Edifício Kavanagh, e eu lhe contei da história de amor — se é que podemos descrever assim — que havia por trás de sua construção. Tenho, por mim, que sua vocação e interesse pela Arquitetura nasceu dali.
Antes desta, recordo-me da viagem que realizei com Isabel e o casal Adhemar e Tereza, amigos de longa data, quando estivemos no Norte, e visitamos o monumental Teatro Amazonas, em Manaus, e o incandescente Ver-o-Peso, em Belém. Foi ali que me dei conta da grandiosidade e pluralidade do Brasil e de como aquilo era apaixonante.
Poderia passar horas a fio rememorando as viagens que realizei, as belezas vivenciadas e as experiências singulares. Entretanto, caríssimo, esta não é a história de um velho relembrando momentos, numa espécie de diário ou coisa parecida. Tampouco seja um relato de como surgiu os planos de uma viagem pela América Latina com meu neto. Quero, aqui, contar da mensagem de esperança que recebi.
À época da construção da Quinta, fiz questão da restauração da capela que ali já se encontrava, no topo do morro. Estive, na ocasião, com o saudoso Dom Othon Motta, recém-chegado em Campanha. Quis ter com ele a solicitação de suas bênçãos e que, respeitosamente, fosse alterado a devoção à Nossa Senhora de Guadalupe, Padroeira das Américas.
O fato de ter nomeado o local com um nome tupi-guarani, Pindorama, não agradou a Dom Othon, motivo de relutância para tal solicitação. Após insistência de minha parte, inclusive relatando meus motivos para o simbolismo dos nomes, obtive a permissão clerical.
Nos meus momentos reflexivos, fazia questão de caminhar até lá. Um cenário de paz e espiritualidade que acalentava os corações mais inquietos. Meus pensamentos, desde a conversa e posterior decisão da viagem com Augusto, se voltaram para a sutil passagem da Constituição Federal. Idealizei a realização desta comunhão latina, da integração de povos tão distintos e, ao mesmo tempo, tão iguais.
Há tanta força presente neste continente, tanta riqueza e potencial! Imaginava a consolidação de políticas que ultrapassassem fronteiras e promovessem o desenvolvimento de todos, e que as distâncias geográficas se encurtassem e as diferenças culturais se mesclassem. O que não imaginava é que hoje seria meu último momento na capela.
Faltando uma semana para a partida da viagem, meu corpo decidiu partir. Eram os Relógios da Vida! Subi, lentamente, pela trilha que levava até o pequenino santuário. Lá, encontrei um envelope e, dentro dele, um papel com uma espécie de poema, grafado a mão.
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O misticismo presente nisto poderia gerar suspeições, mas não quero inferir na crença de ninguém. Por mim, fora um remetente oculto, transcendental. Fui tomado por uma euforia súbita, fonte da visão turva e da subsequente queda nos degraus da Capela.
Dentro de mim, ainda havia brasa para seguir, mas o sentimento de dever cumprido também se fez presente. Não imaginava uma partida sem despedidas, nem ao menos gostaria de motivar tristeza na minha querida família. Mas era este o momento.
Seguirei amando Isabel, meus filhos e netos. Seguirei acreditando num horizonte sempre melhor. Espero que Augusto compreenda e não desista da nossa jornada. E que, pela América Latina, logo mais, nossos sonhos sejam verdade. Despeço-me, aqui, com a cálida mensagem do envelope:
“Meu amigo, alegra-te. A nossa história ainda será contada.
Soy, soy lo que dejaron
Soy toda la sobra de lo que se robaron
Un pueblo escondido en la cima
Mi piel es de cuero, por eso aguanta cualquier clima
Soy una fábrica de humo
Mano de obra campesina para tu consumo
Frente de frío en el medio del verano
El amor en los tiempos del cólera, ¡mi hermano!
Soy el Sol que nace y el día que muere
Con los mejores atardeceres
Soy el desarrollo en carne viva
Un discurso político sin saliva
Las caras más bonitas que he conocido
Soy la fotografía de un desaparecido
La sangre dentro de tus venas
Soy un pedazo de tierra que vale la pena
Una canasta con frijoles
Soy Maradona contra Inglaterra, anotándote dos goles
Soy lo que sostiene mi bandera
La espina dorsal del planeta es mi cordillera
Soy lo que me enseñó mi padre
El que no quiere a su patría, no quiere a su madre
Soy América Latina
Un pueblo sin piernas, pero que camina, ¡oye!
Tú no puedes comprar el viento
Tú no puedes comprar el Sol
Tú no puedes comprar la lluvia
Tú no puedes comprar el calor
Tú no puedes comprar las nubes
Tú no puedes comprar los colores
Tú no puedes comprar mi alegría
Tú no puedes comprar mis dolores
Tengo los lagos, tengo los ríos
Tengo mis dientes pa’ cuando me sonrío
La nieve que maquilla mis montañas
Tengo el Sol que me seca y la lluvia que me baña
Un desierto embriagado con peyote
Un trago de pulque para cantar con los coyotes
Todo lo que necesito
Tengo a mis pulmones respirando azul clarito
La altura que sofoca
Soy las muelas de mi boca, mascando coca
El otoño con sus hojas desmayadas
Los versos escritos bajo la noche estrellada
Una viña repleta de uvas
Un cañaveral bajo el Sol en Cuba
Soy el mar Caribe que vigila las casitas
Haciendo rituales de agua bendita
El viento que peina mi cabellos
Soy todos los santos que cuelgan de mi cuello
El jugo de mi lucha no es artificial
Porque el abono de mi tierra es natural
Não se pode comprar o vento
Não se pode comprar o Sol
Não se pode comprar a chuva
Não se pode comprar o calor
Não se pode comprar as nuvens
Não se pode comprar as cores
Não se pode comprar minha alegria
Não se pode comprar minhas dores”
* Lucas Filipe Toledo é graduado em Direito pela PUC/Poços e graduando em Administração Pública pela Unesp. Essa obra ficou em terceiro lugar na categoria Conto do IV Prêmio Literário da PUC Minas – edição 2021