Ao mestre Kaja, com carinho

O diretor do Jornal da Cidade fala sobre sua convivência com Kajany

O jornalista e diretor do Jornal da Cidade, João Gabriel Pinheiro Chagas Freitas, fala de sua convivência com o professor Kajany César Moreira dos Santos, assassinado no sábado, 2 de dezembro.

Ouvi o nome do Kajany pela primeira vez ainda criança, no final da década de 1980. Meu pai havia colocado em casa uma piscina, de verdade, e eu e meus irmãos ficamos fascinados com aquilo.

Não precisávamos mais ir na Caldense ou na casa de alguém que tivesse uma piscina, pois tínhamos ali mesmo. Era abrir a janela do quarto e ver a água nos convidando para um mergulho.

Eu já sabia nadar, mas minha mãe não tinha muita confiança nos meus outros irmãos, especialmente o caçula, que ainda tinha que usar boias. Foi quando ela pediu ao meu pai para trazer alguém que nos ensinasse a nadar de verdade:

– A gente podia chamar alguém para ensinar os meninos a nadar…

– Chamar quem? – disse meu pai.

– Não sei… E o Kajany? Ele dá aula de natação.

– O Kajany? Não… Ele é sujo… – sentenciou meu pai.

A minha memória quase fotográfica não me deixou esquecer daquele diálogo, principalmente do nome bizarro, que nunca tinha ouvido falar antes. Já adulto, trabalhando no Jornal da Cidade, no fim da década de 1990, voltei a ouvir o nome e a memória afetiva me fez identificar quem era de fato o tal Kajany.

Naquela época, o Kajany já era do jeito que todo mundo sempre o conheceu: falador, para não dizer falastrão. Pela manhã, quando ninguém esperava, irrompia pela Redação do jornal, sem pedir para ser anunciado e sem a menor cerimônia. Dizia que ia lá para tomar um café e ler o “JC”.

Fazia isto com certa regularidade, o que me fez lembrar da conversa dos meus pais sobre chamá-lo para dar aula de natação para mim e meus irmãos. Então, entendi o porquê meu pai, lá nos anos 1980, falou que ele era sujo. Enfim… percebi que não dava para ter nenhum tipo de conversa convencional com o Kajany.

Porque nunca era conversa, era monólogo. Ele começava a falar uma sequência de coisas com uma velocidade arrebatadora e qualquer assunto que se tentasse dizer, já era rebatido com várias outras argumentações. Percebia que tinha algo errado com ele, mas nunca me ocorreu inicialmente a questão da esquizofrenia.

A impressão que tinha era de alguém extremamente inteligente, mas totalmente perturbado. Ao longo dos anos, convivia com ele de forma eventual, quando aparecia no jornal. O problema é que o Kajany se tornava cada vez mais inconveniente, falando coisas sempre absurdas e até mesmo agressivas. Mas sempre o toleramos e respeitamos. Puxando pela memória, vou enumerar algumas das maiores viagens que escutei do Kajany na Redação do jornal:

1) Que a mãe dele, Jaçanã Musa dos Santos, foi a primeira corintiana de Poços de Caldas. Hoje, entendo que na época da Jaçanã, não era comum mulher se interessar por futebol e ainda mais pelo Corinthians, pois estamos em Minas, temos a Caldense e não haviam jogos pela TV. O Kajany adorava quando dizíamos que a Jaçanã prestou um grande desserviço a Poços de Caldas ao introduzir o corintianismo por aqui. Ele completava dizendo que torcia para a Portuguesa de Desportos.

2) Kajany se vangloriava da forma física e de ser professor de Educação Física. Até que um dia, apareceu no jornal com um calhamaço de papel sulfite, mimeografado, sujo e cheio de dobras, com um estudo sobre o preparo físico das forças nazistas na Segunda Guerra Mundial.

3) Durante um tempo, ele sumiu do jornal. Quando reapareceu, fez uma assinatura e pediu para entregar na casa dele, na rua XV de Novembro. Mais recentemente, ele trocou a assinatura impressa pela digital. Escrevia todo dia por e-mail para comentar a edição do jornal, criticando ou elogiando, sem papas na língua. Pelo histórico de esquerda dele e da mãe, cismou que a CIA estava interferindo na linha editorial do jornal e que estava sendo monitorado pelo fato do envio da edição ser via e-mail. Então, resolveu voltar a assinar a versão impressa, para ter “segurança”.

4) Kajany dizia que era praticante de artes marciais e certa vez, nos contou que havia feito uma viagem espiritual na década de 1960 pelo Vietnã, Laos, Camboja e afins e aprendido tudo sobre luta. Passarmos a chamá-lo de “Mestre Kaja”. Era perceptível a satisfação dele quando ouvia isto, principalmente depois que ele falou que conheceu e treinou com Bruce Lee.

5) Quando meu pai faleceu, em 2013, o Kajany resolveu escrever um texto sobre ele no seu “brog”, como gostava de dizer. O melhor de tudo foi quando ele escreveu que meu pai foi para os EUA no fim dos anos 1960 para servir na Guerra do Vietnã. Sim, me alegrou no luto, pois ri muito.

6) Ao longo de todo este tempo, mesmo falando todo tipo de bobagem, sentia que ele ficava de fato bravo quando alguém dizia que o pai dele era o falecido jornalista Antônio Carlos Viviane, o Kakalo. Imitando o próprio, Kajany dizia: “Esse cara não é meu pai, bicho! Hahahahahaha”.

7) Kajany dizia que era poliglota, inclusive com fluência em russo, e que tinha feito inúmeras faculdades. Mas admtia, quando contrariado, que não completou algumas delas.

8) Kajany sempre levava no jornal uma edição novinha do Le Monde Diplomatique. Dizia que era assinante, mas que depois resolveram enviar para ele por conta de todos os seus mestrados e graduações. Como não era uma leitura rápida, tinha certa satisfação de deixar o exemplar lá para pegar depois.

Quando reformei o jornal no ano passado e coloquei um porta eletrônica, o Kajany parou de “invadir” a Redação, como gostava de dizer. Sem poder entrar sem que eu autorizasse, ele parava no bolsão de motos em frente à Igreja Metodista e começava a fazer um “comício” direcionado ao jornal, às vezes nos chamando de comunistas, stalinistas e por aí vai, e outras vezes, dizendo que o jornal tinha se vendido aos EUA e que tinha virado liberal. Isto quando não começava a questionar a Reforma Protestante e se virar para a igreja, falando uma série de impropérios.

Kajany era um dos assinantes mais antigos do Jornal da Cidade e um dos primeiros da versão digital. Sistemático, só aceitava fazer assinatura anual e pagar em dinheiro. Nada de cheque, boleto ou transferência. Em fevereiro de 2017, Mestre Kaja esteve lá para renovar mais uma vez sua assinatura. Em fevereiro de 2018, infelizmente, ele não vai renovar. E o lamento não é pelo dinheiro: é pela falta da sua inconveniência.

* João Gabriel Pinheiro Chagas Freitas é jornalista e diretor do Jornal da Cidade. E-mail: joaogabrielpcf@gmail.com