Anarquia, Oi

O jornalista Daniel Souza Luz relembra a montagem de uma pista improvisada de bicicross

O jornalista Daniel Souza Luz escreve a crônica Anarquia, Oi, onde relembra a montagem de uma pista improvisada de bicicross no Jardim do Ginásio, em Poços de Caldas.

O sol cálido na medida certa reluz nos tacos do assoalho dispostos como era no apartamento no qual passei a infância e adolescência, nos anos setenta e oitenta, e traz a lembrança das tardes em que não precisava ficar restrito a um am-biente interno de escritório.

Especificamente, de quando tive calos nas mãos pela primeira vez. Carregava uma enxada, sob o olhar espantado do meu pai – “Não imaginei que sairia da roça para ver filho meu pegar na enxada”. Mas a frase foi acompanhada de um sorriso aprovador, sendo o estranhamento fruto apenas do inusitado. Morávamos num bairro bem arborizado, mas totalmente urbanoide.

Expliquei-lhe calmamente: é que estávamos fazendo uma pista de bicicross num terreno vago. A pista que construímos ficava em um enorme ter-reno na confluência das ruas Tomás Alvisi e Maria José Rabelo Brochado, no Jardim do Ginásio, um quarteirão abaixo do Colégio Municipal Dr. José Vargas de Souza.

Quem teve a iniciativa? Estive presente à rodinha de conversa morgada, logo após o almoço, quando chegávamos de escolas diferentes loucos para poder trocar ideia, quando alguém surgiu com essa. Mas décadas depois, o autor se esvaiu da lembrança; é como se tivesse sido um desígnio divino do qual nos incumbimos de bom grado.

Em uma semana mais ou menos fizemos uma pista com rampas e fossos. Terminava numa ladeira do terreno que era abrupta e íngreme. No entanto, não a temia. Era uma subida aos céus da adrenalina. O primeiro a descer foi um amigo do bairro de cima, cuja alcunha era Alemão. O único que já tinha entrado em competições de bicicross, salvo engano.

Caiu no fim da pi-cada – literalmente – e foi parar no meio do mato. Ficou lá rindo. Anos depois contaria que estava chorando e que conseguiu disfarçar bem. Era o mais velho, pegaria mal – homens não choram, sabem qualé, acreditávamos piamente nisso. O melhor foi a união que rolou entre a galera de bairros vizinhos. Moleques que não passavam pela mesma pinguela trabalhando lado a lado, sem rusgas. A conversa da qual mais me lembro era sobre a prisão – ou detenção? – de Paulo Ricardo, do RPM, por porte de cocaína.

Seria boato? Nunca quis conferir. Enfim, não es-tava no horizonte de eventos à época. O buraco era menos embaixo e não era negro, mas sim cor de terra. Marcamos um campeonato da rua. No final de semana, acho. Já tínhamos treinado bastante. Houve baterias, como nas competições oficiais de bicicross, houve ganhadores, mas sei lá quem foi o ganhador. Não me importava muito, estava nessa por diversão e, além disso, isso foi há quase trinta anos.

Numa segunda-feira, creio, depois da escola, a pista estava destruída. O terreno tinha dono, claro. Óbvio. Propriedade privada, não era segredo. Ver tudo revirado, à toa, foi o desalento que fez cada um tomar seu rumo. Agora, pela primeira vez, ao me lembrar da pista que não deixou traços da existência e deu lugar a três belas casas, me dou conta de que a construção coletiva, colaborativa, sem chefes, além do convívio nela, foi a primeira TAZ, Zona Autônoma Temporária, como preconiza o anarquista Hakim Bey, da qual tomei parte.

* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com