Amor de quarentena
Marcos trabalhava durante o dia e estudava à noite. Alice já tinha se formado e apenas trabalhava. Eles se conheceram por acaso, em um post sobre política em uma rede social.
Ela adorava trocar ideias e impressões sobre o que acontecia no país e no mundo. Não raro, tinha opiniões bem fortes e dificilmente cedia na sua argumentação. Em um post sobre os rumos da economia no país, Marcos leu o comentário de Alice e curtiu.
No dia seguinte, Marcos percebeu que Alice continuava comentando no grupo e concordava com praticamente tudo o que ela dizia/escrevia. Marcos passou a nutrir uma admiração velada pela personalidade de Alice, que não se deixava intimidar pelos haters que sempre aparecem nestas discussões. Até que Alice foi atacada por vários deles.
Sem condições de apresentar argumentos, apelavam para a misoginia. Marcos leu os comentários e tomou coragem. “Vou responder esses babacas”, pensou. “Por que vocês não respondem com argumentos? Me convençam que ela tá errada”, postou. Uns cinco minutos depois, ele recebeu uma mensagem in box. “Te agradeço por me defender, mas eu tô acostumada com gente deste tipo”.
Marcos ficou com um nó na garganta, pois não esperava receber a mensagem. “O que respondo? Como respondo?”. Enfim, Marcos tomou coragem e respondeu. Disse que já acompanhava as opiniões dela há alguns dias e concordava com as opiniões dela. Alice respondeu que não queria convencer ninguém de qualquer coisa que seja. A conversa fluiu. Trocaram mensagens in box por várias horas.
No dia seguinte, continuaram o papo. Marcos contou quem era, o que fazia, onde morava. Alice fez o mesmo. Descobriram que estavam na mesma cidade, mas moravam em extremos diferentes. Com o desenrolar do papo, perceberam que tinham muitas afinidades. Gostavam de política, cinema, TV, esportes, música, literatura, astrologia, culinária…
A conversa chegou no momento crucial. Era preciso descobrir se eram comprometidos ou se estavam livres. Marcos contou que era solteiro e que teve duas ou três namoradas. Mas tinha que dar assistência para os pais mais velhos e um irmão mais novo. Alice também estava solteira, mas revelou que era divorciada e tinha uma filha pequena de um casamento que não deu certo desde o começo. Coisas da vida.
Após semanas de bate-papo, Marcos e Alice se descobriram apaixonados. Só faltava se encontrarem, mas com a falta de tempo de ambos, então, a conversa amenizava o problema. A vontade de se verem era grande, mas nenhum deles havia em um encontro. Faculdade, trabalho e família não deixavam espaço para nada.
Até que aconteceu uma situação totalmente improvável para eles. Uma pandemia causada por um vírus começou a se espalhar pela Ásia. De lá, o vírus pulou para a Europa e em seguida, para os Estados Unidos. Em poucos dias, o vírus chegou no Brasil. Ninguém deu muita bola. “Vírus se cura com vacina e remédio”, era o comentário da maioria. O problema é que não havia nem vacina e nem remédio para esse vírus.
E ele começou a infectar todo mundo. Muita gente começou a morrer e o governo teve que impor toque de recolher e quarentena. Ninguém mais poderia sair de casa, sob risco de prisão e multa. Houve um colapso generalizado na sociedade: saúde, transporte, comércio, serviços, comunicações… Tudo parou de funcionar ou passou a funcionar de forma precária.
Marcos e Alice continuaram a conversar todo dia, trocando impressões e opiniões sobre a crise. Tiveram a sorte de poderem trabalhar e estudar em casa. Mas o colapso causado pelo vírus fez ainda mais estragos. Com menos funcionários presenciais disponíveis, o sistema de telefonia e de internet começou a dar pane por falta de manutenção.
Em alguns dias, a internet parava. Em outros, era o telefone. Tinham dias que não funcionava nem internet e nem telefone. Marcos e Alice chegaram a ficar sem se falarem uma semana. Um casal apaixonado que não pode se falar é quase que uma sentença de morte. Nenhum dos dois queria morrer de amor. Quando a internet voltou, não houve dúvidas. Era preciso que eles se encontrassem.
Eles tiveram todas as chances possíveis de se verem pessoalmente quando a situação estava normal, mas só descobriram que isto seria fundamental quando estavam proibidos de se verem. Como moravam em regiões opostas da cidade, resolveram se encontrar no Centro. Era meio caminho para ambos. Alice sugeriu que o encontro deveria ser durante à noite, porque poderia haver menos vigilância.
Eles não tinham carro e o transporte coletivo estava suspenso. O jeito era ir de bicicleta. E assim aconteceu, com ambos se esgueirando por ruas ora escuras, ora muito iluminadas. Os carros da polícia circulavam usando holofotes e alto-falantes para lembrar do toque de recolher. Marcos e Alice conseguiram se desvencilhar, usando sabiamente as sombras e os becos da cidade.
Enfim, chegaram na praça central, totalmente deserta. Quando se viram, pedalaram um em direção ao outro. Pularam da bicicleta e não falaram nada. Apenas se contemplaram. Cada um era o que o outro imaginava. Deram um abraço apertado.
Quando foram se beijar pela primeira vez, um holofote pairou sobre eles. “Parem o que estão fazendo! Vocês estão presos por desobediência!”. Marcos e Alice ignoraram a ordem e se beijaram intensamente. Só foram separados quando os policiais chegaram e colocaram cada um em uma viatura.
* João Gabriel Pinheiro Chagas Freitas é jornalista e diretor do Jornal da Cidade. E-mail: joaogabrielpcf@gmail.com