A província cruel

A atriz e escritora Beatriz Aquino escreve mais uma crônica sobre a sociedade contemporânea.

De subterfúgios, ando coxa, cega e manca. Sei mesmo é encarar as coisas de frente com esse peito escasso de carnes, mas cheio de orgulho. Dia desses me queimaram as pupilas de tanto cinismo.

O riso do mundo é farto de escárnio. Crueldades caem opulentas e distraídas dos bolsos dos maus. Gente de sorriso multifacetado e faca no ciso. Tentaram, porque quis meu bom Deus que eu nascesse honesta, apagar-me a fisionomia, escurecer-me o semblante. Nossa Senhora que fizeram de tudo.

Me anularam as digitais, me arrancaram os dedos para que eu não mais escrevesse, e colocaram nesse papel branco e puro da minha vida palavras que que não são minhas. Inventaram perigos que não tenho, me enxertaram adendos, memorandos, carimbos e membros que não reconheço. Dizem-me impura logo eu. Logo eu… Por isso a revolução. A Inconfidência, os Farrapos, o 14 Juillet.

Pois pra quem toma o rumo das narinas assim e sai pela vida sozinha e sem proteção é sempre maio de 68. Quem me dera fosse sempre paz. Mas é luta de homem e de foice. De ego e de medo. De matar ou morrer. É assim. Desde que o mundo é mundo. É assim. A pele alva e pouco comprometida com atrocidades incomoda. Reflete a feiura do outro e aí já viu.

É confronto, discórdia e tanta, tanta mentira. Venho sendo circundada por montanhas lindas recheadas de bárbaros. Os olhos amarelos escondidos na mata escura. A matilha de coiotes famintos me mordendo os calcanhares enquanto olho para a lua. As estrelas me prometendo paz alhures e sob meus pés o rio de sangue fétido da desonra alheia.

Na província, ainda bela por fora, mas consumida por dentro, tudo segue a contento no andar planejado de uma maquete de faroeste de algum parque temático de quinta. As montanhas sendo servidas à colheradas para as mineradoras. As praças e suas fontes contaminadas pela maledicência.

A vida do outro como o tema principal acompanhado por um acordeon rouco e cansado. O mundo tornou-se um grande asilo de putas velhas e afônicas. As bocas cansadas e sem força para chamar os fregueses. O olhar perdido e os caninos solitários para facilitar o ofício. E tudo segue. Tudo a serviço da grande farsa. Os lares com suas fotos perfeitas de composições familiares ainda mais perfeitas, escondem sobre o brilho das cores natalinas, os embates, as indecências, os enlaces arranjados.

Mulheres frígidas, senhoras frívolas, crianças hiperativas empanturradas de açúcar, culpa e tablets. Homens em algemas de ouro desfilam o corpo vendido pelas convenções acenando a sinistra comprometida para as mulheres de ninguém.

E depois desfilam a mesma fronte adúltera nas filas de empréstimos, no batizado das filhas, nos bailes de debutantes, nas menções honrosas. A mesma facie sorridente e atuante nos bordéis e nos cartórios.

Tudo é válido se a aparência se sustenta no patamar exigido. Exigido por quem ninguém nem lembra mais. Mas não importa. Uma nota no jornal, uma indicação na empresa, uma placa com o sobrenome na porta do hospital. Isso sim importa. É isso. Eu disse que não sou de falações.

Mas essa coisa de me arrancarem sem anestesia a pele dos dedos só para diluírem as digitais e sumirem com o que eu sou, mexeu-me com os brios. E escrever assim com os dedos em carne viva imprime mais fundo e mais forte que qualquer decreto de lei. Porque o sangue de quem sente mancha o peito do seu algoz.

E isso é nódoa que não sai. E eu nunca fui de rabiscar leviandades. Por isso aviso. Há marcas de vida no meu rosto. Tenho conversado com deuses e estrelas, portanto não espere de mim um cinismo que não tenho. Não queira me afagar as têmporas com suas mãos comprometidas. Guardem suas mentiras para suas esposas dissimuladas. Guardem suas fofocas para suas amigas surdas de perfidez.

Voltem seus discursos de hipocrisias para as decrépitas do chá das cinco. Eu entendo de vento, de luz, de liberdade e de poesia. Sobrenomes, brasões de lata e cultura de latifúndio eu deixo aos bárbaros. Quero morrer nua e descalça sobre as quedas d’água das esquinas do mundo. Um canto pra mim é um hemisfério inteiro. O meu riso e entendimento vai além da última nuvem onde lá, o sol se apresenta ainda despido. Mas é isso.

E eu que não sou de guerras, mas que carrego Iansã nas veias, tenho me deparado com isso tudo. As ruas pavimentadas, as caras pavimentadas. Tudo virou uma grande calçada onde um deus cínico passeia. Vitrine de horrores. E no entanto é Natal. Comerciais exigem uma felicidade editada e paga em suaves prestações. Há de se cobrir de dourado e branco e rezar uma reza rápida pra um deus também inventado. Tudo deve servir ao grande falo da conveniência. Fome. Fome. Fome sem fim.

Mas é Natal e me pedem para ser boa e cordata. E desfilar com vestidos castos e palavras ordeiras pelas mesas fartas. E até tento. Pelo pesar que sinto por essa grande comédia humana, eu tento. Mas meus olhos tão assim feitos de retinas honestas, andam cansados de assistir a mesma peça teatral do mundo onde atores repetidos batem, ano após ano, o mesmo texto.

E ao assistir assim, essa esquete para a qual nem comprei ingresso, onde sei de cor as falas dissimuladas, não deixo de ver a cidade, tão cheia de luz e de rostos esfuziantes, como ela realmente é: Uma vedete cansada. Uma cortesã falida onde todos entram, se aboletam e chafurdam, mas ninguém goza.

A elasticidade dela e de todos os outros tão frouxas quando suas morais. O tônus da alma perdeu-se há muito e todos tentam alinhavar com fios e botox o que a gravidade e a ignorância lasciva dos sentidos tratou de fazer desmoronar. But, Merry Christmas anyway…

* Beatriz Aquino é atriz e escritora. E-mail: beapoetisa@gmail.com