Em A Bruxa, não é preciso ver para sentir o medo

O crítico de cinema Marcelo Leme faz sua análise sobre o filme "A Bruxa"

Avaliação do Editor

8.5
avaliação 8.5

O crítico de cinema Marcelo Leme faz sua análise sobre o filme “A Bruxa”, que nasceu da dúvida da existência daquilo que seus personagens acreditam.

Os contos de horror geralmente se apegam à oposição do bem contra o mal, e dentro da tradição religiosa cristã, historicamente representada nas telonas, a oposição ganha nomes num conflito binário: Deus contra o Demônio. É bem verdade que o ceticismo ou a crença pessoal do público implica diretamente na experiência de assistir a um filme. A qualidade da obra de horror não deve ser medida pelo quanto consegue provocar arrepio ou tensão, mas como o faz. Daí não importa crença ou descrença. Já a experiência do cinema oferece artifícios a fim de despertar sensações significativas para um filme de terror verdadeiramente funcionar. A direção se submete a uma proposta e o filme nasce. O horror de A Bruxa nasceu da dúvida da existência daquilo que seus personagens acreditam.

Num tribunal, uma família é acusada de blasfêmia. Essa família se desliga de uma comunidade, abraçadas ao sobejo da fé que duvidam que qualquer outro ser tenha tal como eles. Passam a residir ao lado de uma floresta onde cultivam o que consomem. Somos imediatamente apresentados a essa família. Aprenderemos e compreenderemos seus dilemas morais. A forma filmada pelo cineasta Robert Eggers parece querer demonstrar profunda tensão com um desespero iminente, como se a qualquer instante algo pudesse acontecer. A incerteza daquele contexto parece nos preparar para algum tipo de surto, pois a sensação é de tudo fazer parte de um pesadelo.

A começar, a ambientação. A popularização de mitos e lendas ganhou espaço em diversas formas de representações artísticas. No cinema não foi diferente. Em A Bruxa, a inferência vem do cristianismo, a partir de uma família religiosa camponesa em 1630, na Nova Inglaterra. Vivendo segundo as tradições da igreja, a família passa por uma série de conflitos inexplicáveis e busca suas razões. A leitura que fazem encontra uma vítima a ser culpada. A culpa está personificada na pele de uma jovem mulher, acusada de feitiçaria. O que alimentou a inquisição, alimentará a ira de um povo temente frente a um mal invisível escondido numa floresta. E justamente por se tratar do intangível, a curiosidade impera.

Cena de "A Bruxa": não é preciso ver para sentir o medo
Cena de “A Bruxa”: não é preciso ver para sentir o medo

A construção de toda a tensão é conduzida por ambientação, a partir da imersão contextual, da fotografia turva, da reprodução artística arcaica e da insegurança que a dúvida causa, assombrando com suas possibilidades. Eggers sabe que imaginar é muito mais aterrorizante que vivenciar, uma vez que a imaginação não tem limites. E é com esse artifício psicológico que o filme assombra, infiltrando a dúvida nas sombras. O horror é imediato e inconclusivo. Cenas de terror se misturam. Cenas envolvendo uma cabra – símbolo pagão – são aflitivas.

Não é preciso ver para sentir. Refiro-me ao medo. Reconhecido dentro do filme, o percebemos dentro da narrativa a partir das ações quase insanas de seus personagens, reconhecendo aos poucos a realidade que estão experimentando. Há um fato consensual: uma criança desapareceu. Há relatividades para o fato, todas fortalecidas pelo ideal cristão da culpa e punição. E veja, o filme não visa fazer uma crítica religiosa, apenas se apropria de sua visão para traçar o horror. É uma alçada ao sobrenatural, desenrolada com inquietações. Já mencionada, a sensação de um profundo pesadelo é natural por emular níveis de loucura.

O elenco é abarrotado de crianças, o que naturalmente causa mais tensão. Os diálogos são pontuais, limitados e muitas vezes narrados, com falas arrastadas. Ênfase na atriz Anya Taylor-Joy que vive Thomasin, extraordinária vivenciando uma vítima do medo, concedendo meiguice e delicadeza a sua personagem. É nela que o filme concentra.

Ele também apresenta um viés de autoridade convencional, estando o patriarca da família sempre à frente, iluminado e com uma posição confortável à mesa. Tradições são inabaláveis dentro desse núcleo. O diretor coordena a imagem e trabalha com disposição dos personagens em cena. Os sons diegéticos – galhos, vento, passos – e a fotografia atenta às sombras – o sol parece inexistir naquele espaço onde a iluminação mais evidente são de velas – favorecem a sensibilidade dramática. São atributos naturais em filmes de horror, o que diferencia aqui é ser independente de trilha para construir a percepção de temor. Eggers parece decidido em assumir os riscos e não cede a soluções simplórias.

Nesse cenário, tudo é conjuntura para a imaginação ao que de fato reside no meio da floresta. O grande desafio da obra é manter esse clima sem desviar o foco, sem dispersar o suspense conquistado e o terror originado. Às vezes soa repetitivo, às vezes parece que não vai a lugar algum. Em sua coerência, o filme se mantém consistente e se torna um dos mais relevantes trabalhos do gênero lançado nos últimos anos. Há duas ou três cenas que provavelmente serão lembradas por algum tempo após a sessão graças ao realismo. Além de tudo, além de perturbador e honestamente inquietante, soa profano. E, particularmente, sou seduzido pelo que é mundano.

* Marcelo Leme é psicólogo e crítico de cinema