Mercenárias
O jornalista e revisor Daniel Souza Luz escreve suas memórias sobre a banda Mercenária
O jornalista e revisor Daniel Souza Luz escreve suas memórias sobre a banda Mercenárias, que trouxe a pauta feminista para o rock brazuca dos anos 1980.
O disco roda em 45 rotações por minuto. Por sorte meu aparelho de som tinha esse recurso – ainda tem. Achei num sebo. É de 1986. Estamos em 1989, leitor. A banda não existia mais há um ano, descobriria numa revista Bizz, também comprada num sebo, uns dois ou três anos depois.
Estava vivendo intensamente algo que já havia acabado. Os anos oitenta tinham muito disso; o apartamento onde vivia na rua Platina era uma caverna de Platão, no qual as sombras dançando ao fundo não eram sombrias, mas sim tão fascinantes quanto um teatro de sombras é para uma criança – a qual talvez eu ainda fosse um pouco ali, com 14/15 anos. Cadê as Armas? foi o primeiro disco das Mercenárias.
É a obra da qual estou falando no primeiro parágrafo. Foi lançado pela gravadora independente Baratos Afins, na verdade uma tradicional loja da Galeria do Rock em São Paulo, capitaneada por Luiz Calanca. Até hoje amigos meus headbangers dizem que sou sócio do estabelecimento, pois sempre que vamos juntos à Galeria eles compram vários CDs de heavy metal e eu volto com os vinis de pós punk, MPB não convencional e experimentalismos diversos que a Baratos Afins lançou há três décadas e que ainda têm alguns exemplares repousando nas prateleiras.
As Mercenárias foram – na verdade são, pois retornaram às atividades na década passada e ainda existem – uma banda pós punk que trouxe a pauta feminista para o rock brasileiro dos anos 1980. É formada apenas por mulheres, embora o primeiro baterista tenha sido Edgar Scandurra, depois famoso como o guitarrista do Ira!. A segunda baterista, Lou, a que gravou os discos, tornou-se um homem transexual e hoje se chama Leo Moreira Sá.
O som é perfeito para mim: uma banda pós punk que manteve a pegada punk/hardcore do Dead Kennedys, por exemplo, mas tem os ritmos esparsos, o baixo pesado sobrepondo-se à guitarra, o experimentalismo que aproxima-se até do funk e o pendor para a poesia de grupos como Joy Division, PIL e Siouxie and Banshees.
Mas é muito acima disso tudo, pois as influências foram amalgamadas numa sonoridade única, facilmente reconhecível e destacável de seus pares contemporâneos. Desde que ouvi pela primeira vez, tornou-se minha banda brasileira favorita. Sou tão fã que no fim dos anos noventa escrevi um longo artigo sobre elas para um dos fanzines que editei, chamado Acervo. Tenho todos os discos, até a demo de 1983 relançada em vinil.
O segundo álbum, Trashland, foi lançado por uma grande gravadora em 1988. Com pouca promoção, a banda foi deixada de lado. Talvez mais sofisticado, com participação inclusive do trombonista Bocato numa das faixas, mas mantendo a sonoridade intacta, é tido por muitos fãs com quem converso como o melhor trabalho delas. No entanto, por mais belo que seja e por mais que eu também adore, não me fulminou como o Cadê as Armas?.
Este tem até algo que diz muito sobre o “ecumenismo” do grupo: a faixa anticlerical Santa Igreja tem participações nos backing vocals de João Gordo, do Ratos de Porão, e Vange Leonel, do grupo Nau, que depois ficou famosa com uma música muito pop, Noite Preta, e tornou-se uma militante pelos direitos LGBT. Infelizmente, ela faleceu em 2014.
Voltando às Mercenárias, como já mencionei, a banda acabou após o Trashland, mas elas voltaram a tocar num momento de valorização do pós punk, em meados da década passada, com a vocalista Rosália Munhoz e a baixista Sandra Coutinho da formação original. Lou/Leo já estava afastada da música e tornou-se ator.
Um amigo, o PC, que trabalhava com a guitarrista original, Ana Maria Machado, contou-me que ela foi convidada para o retorno da banda, mas ela disse-lhe que já era até avó e também estava afastada da música há muito tempo. Desencorajado por não ser a formação clássica, só animei-me de vê-las em 2012, na Virada Cultural em São Paulo. Rosália já tinha saído e Sandra Coutinho assumido os vocais.
Acompanhado por um amigo de Poços de Caldas que mora em Santo André, o Alencar, foi um dia histórico para mim: finalmente vi um show do Suicidal Tendencies, o notório grupo de skate rock/metal, de manhã, e um show delas, à tarde. Foi tão bom que fui vê-las novamente em outra Virada Cultural, já com outra baterista, que também tocou com outra destacada banda feminista, mas de hardcore, na mesma tarde, Dominatrix, em 2014.
Este show das Mercenárias me deu arrepios, foi mais intenso do que o delas que havia visto antes, e se não bastasse foi um dia ainda mais especial do que o de 2012, pois além de rever Dominatrix, que não via desde 2000, e Mercenárias, de manhã também presenciei o Agent Orange, lendária banda de skate punk, outro show de arrepiar. A maior surpresa as envolvendo, no entanto, ainda estava por vir.
Em janeiro de 2015, dando um passeio em São Paulo, fui convidado por um amigo, o cineasta Bruno Karnov, para participar da ocupação do Parque Augusta. O objetivo era pressionar a prefeitura para que uma das poucas áreas verdes na região da rua Augusta não se tornasse um conjunto de prédios. É um movimento de décadas que está rendendo frutos agora, com o anúncio de que o parque será oficializado.
Foram programadas várias atividades culturais e quando olhamos os cartazes domingo de manhã, ficamos boquiabertos: em apoio à ocupação, haveria shows do Pequeno Cidadão (música de e para crianças, com Edgar e Scandurra e Taciana Barros, da extinta banda Gang 90, entre os músicos) e Mercenárias à tarde. Eu ia embora após o almoço, mas fiquei e vi as bandas, além de palestras.
Foi o show mais divertido que vi delas, agora com outras baterista e guitarrista. Estava mais interessado em pogar e cantar as músicas junto do que apreciar quietamente as músicas. Afinal, não havia palco, a apresentação foi numa tenda e pude estar literalmente no meio da banda. A sensação de comunhão não só durante o show, mas ao longo de todo o dia, é indescritível. Enfim, voltando a 1990 ou 1991: minha irmã Fernanda e suas amigas descobriram que eu tinha o Cadê as Armas?, decoraram umas letras, as cantavam por aí.
Elas adoraram, era uma banda só de mulheres, novidade para elas, com a qual se identificaram. Elas tinham por volta de 10 ou 11 anos. Eu fiquei enciumado. Era a MINHA banda, atitude mesquinha que vi muita gente da minha geração ter, e não era pra outras pessoas conhecerem, ainda me-nos crianças. Mas devia mesmo ter incentivado-as a montarem um grupo influenciado pelas Mercenárias. Faltou-me empatia. A empatia que elas tiveram.
* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com