Meu companheiro de viagem: Di Cavalcanti

Leopoldo Bougeard escreve crônica sobre encontro com Di Cavalcanti na Europa.

O advogado e ex-secretário municipal de Turismo, Leopoldo Bougeard, escreve crônica em que relembra quando se encontrou com o pintor Di Cavalcanti na Europa.

Em setembro de 1965 parti para Bruxelas onde estudaria na universidade daquela magnífica cidade já que meu objetivo maior era seguir a carreira diplomática. Estudar ciências políticas era minha primeira meta antes de ingressar no Instituto Rio Branco, vinculado ao Ministério das Relações Exteriores.

Fiz parte do primeiro grupo de estudantes latino-americanos, patrocinados pelo governo belga, que seguiriam de navio até o porto de Le Havre, na França, e depois, de trem, até Bruxelas. Era um navio misto francês que transportava um pequeno número de passageiros e muita carga.

Faziam parte do grupo, também, alguns professores que ficaram encarregados de fornecer noções básicas da cultura, economia e do cotidiano belga a esses bolsistas ao longo de todo o percurso entre o Brasil e a França. Era um pequeno hotel de luxo inserido num navio cargueiro denominado Charles Tellier.

As palestras eram ministradas no restaurante entre o café da manhã e o almoço e, na parte da tarde, até servirem o jantar. Assim foi durante todo o trajeto com escalas em Las Palmas, Lisboa e Vigo quando tive a oportunidade de conhecer Santiago de Compostela, na Espanha, e bem antes de Paulo Coelho.

Certa manhã tomava o meu café com os deliciosos “croissants” numa mesa de canto para dois lugares quando me aparece um senhor pedindo se podia sentar-se naquela mesa pois todas as outras estavam ocupadas. Esse senhor gordinho e com ar de bonachão à minha frente era o ilustre pintor brasileiro Di Cavalcanti que voltava para Paris, onde residia. Meio caladão, pediu um chá e pegou um dos meus “croissants” que consumiu rapidamente.

Eu, com pouco mais de 20 anos de idade, me sentia até acanhado diante de tão ilustre figura. Fez perguntas sobre o que estava fazendo alí naquele navio e outras coisas triviais. Naquele instante lembrei que tinha colocado na minha mala umas reproduções de pintores brasileiros.

Confesso que não sei, até hoje, o porquê de levar aquelas gravuras. No dia seguinte a situação se inverteu. Quando cheguei ao restaurante para o café da manhã lá estava Di Cavalcanti, sozinho, numa mesa redonda de 4 lugares, próximo à porta que dava acesso à pequena piscina. Ao me ver fez um sinal para que sentasse à sua mesa – era cedo e o restaurante ainda estava vazio. O papo já era mais descontraído e me sentia bem à vontade diante daquela ilustre personalidade.

Pedi licença dizendo que voltaria logo em seguida e fui à cabine e retornei ao restaurante com uma daquelas reproduções. Levava o “Bumba meu boi”, uma das suas obras famosas. Meio sem jeito, pedi se podia autografar aquela obra tão famosa. Na mesma hora Di pediu uma caneta ao garçom e escreveu: “Ao Leopoldo Branco Bougeard uma lembrança de Di Cavalcanti”.

Mais de 50 anos já se passaram. Sem qualquer valor comercial, guardo essa reprodução como se fosse um original. Anos depois, em Paris, passando pela praça dos pintores em Mont Martre, perto da Igreja de Sacre Coeur onde tinha seu atelier, reencontrei, por acaso, com Di e aproveitamos para um café num daqueles bistrôs tão típicos da cidade-luz. É bom recordar velhos tempos.

* Leopoldo Bougeard é advogado e ex-secretário municipal Turismo. E-mail: lbougeard@yahoo.com.br