Devo

O jornalista Daniel Souza Luz escreve mais uma crônica com lembranças da sua adolescência em Poços

O jornalista Daniel Souza Luz escreve mais uma crônica com boas lembranças da sua adolescência em Poços, recheada de referências à cultura pop independente da época.

Devo contar a história tal como aconteceu? Devo. Em 1989 um cara de Caldas, o Fabiano Melo, veio estudar na minha sala. Ele era repetente e bem mais maduro do que nós.

Politizado e bem informado. Era de esquerda e meu melhor amigo à época, Márcio de Melo, o imitava e o zoava impiedosamente na rua; se começava a chover, por exemplo, o Márcio dizia que “é culpa da Globo”, só para sacaneá-lo, pois era uma frase recorrente do nosso colega caldense.

O apelido do nosso amigo de Caldas era Biá, hoje ele é professor de Direitos Humanos no curso de direito do campus da PUC em Poços de Caldas. Um dia, numa conversa de hora de recreio, o Biá descobriu que eu andava de skate e me fez uma boa pergunta.

– Já viu o Thrashin’?
– Ahn?
– O filme sobre skate, como que você não conhece?
– Ah, eu já li sobre o filme nas revistas de skate. Nunca vi. Não tem para locar aqui. Onde você viu?
– Tem em Caldas.
– Não acredito. Caldas é uma cidade muito menor.
– Eu pego na locadora lá e trago para você amanhã.

Ele trouxe mesmo. Mas não lembro por que cargas d’água ele não levou o filme para a escola. Combinou de se encontrar comigo à tarde na velha rodoviária de Poços, já demolida, onde hoje há uma praça predominantemente de concreto – na qual a guarda municipal não deixa os garotos andarem de skate ou bike, a despeito da falta de grama, árvores e frequentadores, que só existem em peso em saraus e manifestações.

Quando rememoro esse encontro assalta-me uma sensação de estranheza. Subi por uma rampa lateral e esperei numa pequena banca, uma mera reentrância naquela rampa (talvez fosse uma escada), que nos meus sonhos é curva; sempre sonho com esse lugar. Eu acho que ela era curva, de fato. Quando caminho pela Avenida João Pinheiro nos meus sonhos, a velha rodoviária ainda existe e ela se apresenta mais real do que nas minhas lembranças dela. Na minha memória, quando me recordo do lugar, as cores são mais esmaecidas.

Comprei alguma das revistas de quadrinhos que colecionava: a Circo, o Geraldão, a Chiclete ou, mais provavelmente, a MAD. Comprei só uma, o dinheiro só dava para isso. Eu deixava de comer lanche na escola para comprar as revistas. Li e esperei.
O Biá apareceu com o filme e lembro-me bem de conversarmos na parte de cima da rodoviária, num parapeito, pois olhávamos para a avenida enquanto conversávamos. Como falávamos sobre Metallica e Guns n’ Roses no colégio, fiquei surpreso quando ele perguntou se eu conhecia Devo, pois é outro universo musical.

– Pô, adoro!
– Tem That’s Good no filme.
– Eu já li sobre essa música.
– Mas você nunca ouviu?

Ele ficou espantado e riu. Eu lia o nome das músicas e bandas em revistas de skate como a Overall e a Yeah! e os decorava. Além de ficar exultante quando tocou Devo no filme, houve outros dois momentos musicais no Thrashin’ do qual nunca me esqueci: o show do Red Hot Chilli Peppers, uma banda ainda desconhecida do grande público, sobre a qual até então eu também só havia lido a respeito, e principalmente a já clássica cena da perseguição de skates (melhor do que qualquer filme de perseguição policial com carros, na qual Josh Brolin, um excelente ator, é alucinadamente perseguido) na qual toca Wild in The Streets.

Quando reconheci essas palavras no refrão logo me lembrei de uma lista de músicas favoritas de skatistas que havia numa Overall ou Yeah! Eu sabia que era do Circle Jerks, mítica banda de hardcore, pois tinha memorizado o nome.

Não há palavras para descrever a emoção de descobrir estes tesouros enterrados, ainda mais naquela época pré-internet, em que o acesso à cultura era tão difícil. Tomei contato com o punk hardcore em filmes; a primeira vez que ouvi Bad Brains foi no Depois de Horas, do Martin Scorsese, naquele mesmo ano.

Neste caso, não sabia de quem era música, não tinha referências, descobri de quem era anos depois. Mas voltando ao diálogo com o Biá.

– Não. Mas eu adoro Satisfaction, já vi o vídeo.

Tinha visto o clipe na TV Cultura, no programa Som Pop, apresentado pelo grande Kid Vinil. Para mim Satisfaction era do Devo; a do Rolling Stones era uma cover ruim. Tempos depois descobri que a original era do Stones. No entanto, para minha memória afetiva, continua sendo apenas uma versão mais ou menos de uma música genial do Devo.

* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com