Desigualdade e racismo persistem como sequelas da escravidão
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Os recentes episódios de racismo, discriminação e trabalho análogo à escravidão vem provocando escândalo na sociedade brasileira e mantendo as discussões sobre o tema.
Isso ganhou mais força com a recente comemoração dos 135 anos da Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, que aboliu a escravização de pessoas no Brasil.
Para muitos especialistas, a prática deixou sequelas que são sentidas até hoje, principalmente entre a população negra e indígena, sobretudo nestes episódios atuais.
Um deles foi a descoberta, em fevereiro, de que 207 trabalhadores recrutados na Bahia eram explorados em condições degradantes por uma empresa terceirizada a serviço de três vinícolas do interior do Rio Grande do Sul.
Os responsáveis pela firma foram autuados com multas superiores a R$ 4 milhões, além de mais de R$ 7 milhões pagos pelas vinícolas. E não foi o único caso.
De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), 97 ações fiscais de combate ao trabalho escravo foram realizadas entre 1º de janeiro e 1º de maio deste ano, resultando no resgate de 1.201 trabalhadores e o pagamento de quase R$ 5 milhões apenas em verbas salariais e rescisórias.
O total foi maior do que o registrado no mesmo período do ano passado, quando houveram 61 ações e 500 resgates.
Para a advogada e pesquisadora Wézya Ferreira, egressa do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (PPGD) da Universidade Tiradentes (Unit Sergipe), estes fatos e muitos outros acabam confirmando uma previsão feita em 1900 pelo escritor e diplomata Joaquim Nabuco (1849-1910): “A escravidão permanecerá por muito tempo como característica nacional do Brasil”.
Segundo ela, o racismo foi a “pedra angular” da sociedade brasileira e influenciou seus moldes culturais, sociais, políticos, econômicos, jurídicos e educacionais, o que permitiu a existência da escravidão.
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“Temos uma herança colonial que versou sobre um sistema cruel de exploração e objetificação de seres humanos. É em razão dessa herança que a história contada dos povos negros e indígenas, no Brasil, via de regra, tem sempre como ponto de partida a escravidão, ressaltando a violência e a desumanização a qual esses povos foram submetidos, mas nunca falando sobre a importância deles para a criação de uma identidade nacional, por exemplo”, ressalta Wézya.
Outros dados são elencados como “múltiplas sequelas” deixadas pela escravidão. Alguns estão na pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, divulgada em novembro de 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O estudo, baseado em dados de 2021, mostra que a proporção de pessoas pardas abaixo da linha de pobreza é de 38,4%, contra 34,5% da população preta e 18,6% entre pessoas brancas.
Mostra ainda que o rendimento médio dos trabalhadores brancos, à época em R$ 3.099,00 é quase o dobro do recebido por pretos (R$ 1.764,00) e pardos (R$ 1.814.00). E que os trabalhadores pretos ou pardos representam 53,8% da população, mas ocupam apenas 29,5% dos cargos gerenciais, contra 69,0% dos brancos.
“Em contrapartida, essas populações são as menos representadas nas casas legislativas, ocupando cargos de poder, ou no ensino superior, por exemplo. Essa disparidade social e racial, se dá pela falta de acessibilidade, pela falta de direitos e de suporte material para garantia de direitos”, afirma a pesquisadora, citando ainda que esses problemas poderiam ter sido evitados se a Lei Áurea garantisse alguma forma de reparação aos escravizados.
“Não houve qualquer comprometimento formal ou material da monarquia com a reparação, a garantia de direitos para aquela população negra que foi considerada como ‘objeto de exploração’ durante o 13 de maio de 1888, tampouco após ele. A população negra se viu ‘liberta’, mas esse foi um caráter meramente formal, já que não houve ferramenta alguma que os inserisse à sociedade”, complementa.
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Racismo que persiste
Somam-se a esses problemas os constantes episódios explícitos de racismo, motivado não apenas pela cor da pele, mas também por motivos religiosos.
Em abril deste ano, em uma escola particular de Salvador (BA), a mãe de um aluno de uma escola particular escreveu críticas e ataques às religiões de matriz africana em um exemplar do livro infantil “Amoras”, escrito pelo rapper Emicida.
Dias antes, na última edição do programa Big Brother Brasil, da TV Globo, três participantes fizeram comentários negativos sobre uma oração feita pelo concorrente Fred Nicácio, que é adepto do ifá.
E na mesma época, em Duque de Caxias (RJ), um motorista de aplicativo se recusou a embarcar quatro mulheres que estavam vestidas com roupas do candomblé.
Wezya Ferreira demonstra que esses e outros episódios são exemplos claros de manifestações diárias do imaginário racista que positivou a escravidão.
“A mentalidade escravocrata é ainda a preponderante no imaginário social brasileiro. Em razão disso, normaliza-se a figura da pessoa negra e indígena em locais subalternizados e de desumanização. As culturas, as crenças, as manifestações populares, a estética de pessoas negras e indígenas é considerada desviante, errada. Isso acontece porque a forma “padrão” de humanização, é somente a que foi inserida pelos colonizadores”, explica.
O Brasil já dispõe de meios legais para combater tanto as práticas correlatas ao racismo, tipificado como crime pela Lei Caó (7.716/1989); quanto às ações análogas à escravidão, previstas no artigo 149 do Código Penal.
No entanto, de acordo com a mestre em Direitos Humanos, outros passos devem ser dados nesse sentido, a começar por admitir a existência das características e das sequelas sociais da escravidão.
Outra necessidade é que os direitos garantidos legalmente à população negra e indígena sejam atrelados à construção de políticas públicas que os confirmem, como as que possibilitem o acesso à saúde, à educação e ao emprego.