Gang of Four
O jornalista Daniel Souza Luz escreve sobre os tempos em que andava de skate
O jornalista Daniel Souza Luz escreve crônica em que relembra os tempos em que andava de skate junto aos amigos na adolescência.
A primeira pista de skate da minha cidade não existe mais. Três de nós quatro também não. Gostávamos de chegar lá de manhãzinha. Pois no meio da manhã já estava o maior crowd, como dizíamos à época. Ou seja, lotada. Não vejo ninguém mais novo ainda usar o termo.
Antes que aqueles tempos chegassem a termo e a pista passasse a ficar vazia, era a hora em que usávamos para aprender a andar direito, para não fazermos feio na frente dos outros. Era só um half pipe – a pista vertical – e mais nada. A pista de street construída em volta só tomaria forma em meados dos anos noventa e nova pista, realmente boa, foi inaugurada no ano passado. Esta história começa no fim de 1989, provavelmente.
Já andávamos na rua fazia tempo, mas a experiência de andar no vertical era (quase) nova. Já havíamos ido andar nas pistas de cidades vizinhas, São João da Boa Vista e Varginha, mas nossos pais sempre faziam com que fôssemos embora logo, eram apenas pequenas concessões que faziam durante viagens. Em Varginha havia um bowl e até hoje me lembro da sensação mágica de andar brevemente numa pista assim. Em SJVB andei pela primeira vez em um half pipe e me apaixonei pela primeira vez, acho.
Tinha uma local chamada Beth que era uma menina linda. Ela era linda MESMO (anos depois um amigo que fiz lá me disse que ela ser tornara modelo), desbocada e simpática – ela me falava oi e eu quase caía do skate. Muito diferente das meninas bonitas que eu conhecia. Andava bem e era mais velha, já devia ter uns 18 anos. Era alta e chegava alto na pista. Inatingível.
Depois de algum tempo aprendendo o valor de acordar cedinho e nos dedicarmos a algo – mas algo que valia a pena – já andávamos bem o suficiente para ficarmos em meio a todo mundo. Mas mantivemos o hábito de ir cedo, para andarmos mais à vontade, sem trombarmos sem querer em ninguém.
O que podia dar treta. No entanto, ficávamos na pista até tarde, quase todo dia. Era bom ficar conversando, de qualquer forma, quando estava tão cheio de gente que tínhamos que ficar negociando de quem era a vez. Sempre tinha algum fominha que queria aparecer, o gralha, como se dizia então, mas nada que gerasse maiores atritos. Mas era gente demais e celeumas surgiram, meses depois.
Com o passar do tempo, havia umas quase brigas lá. Uma tensão muda, uma guerra não declarada de carrancas no lugar de sorrisos. Discuti à toa com um moleque chamado Purga, em 1991. Acho que um cara um pouco mais velho, o Juba, deve ter tomado as dores. O Purga deve ter contado para ele depois. Eu sei que esse Juba, que até então era alguém que só me cumprimentava e com quem eu mal havia trocado algumas palavras, e somente sobre skate, passou a me encarar quando eu chegava à pista. Nunca mais falou comigo.
Eu só ia para lá com meu irmão e meus amigos mais próximos, o Maurício Rodrigues, o Evandro Godói, o Paulo Augusto e o Márcio Melo. Não me sentia mais à vontade. Mas não queria parar de andar na pista. O clima, no entanto, pesou muito. As conversas eram cada vez mais “ganguistas”, embora não houvesse nenhuma gangue de fato. Voltamos a fazer mais street e a ir menos à pista. Andávamos em outros bairros e nas ruas do nosso mesmo, como antes, onde estávamos seguros. Não me esqueço, no entanto, de uma tarde. Nunca me esquecerei.
Todo mundo resolveu fazer alguma outra coisa, jogar War, videogame, algo assim. Eram férias, meio de semana. Só e o Maurício decidimos passar a tarde andando de skate e fomos, skates de baixo do braço, andar no bairro ao lado, interessados em uma transição de uma nova garagem.
Enquanto caminhávamos distraidamente pela Rua Berilo, perto de uma casa que existe até hoje, com duas estátuas de cachorro no portão, demos de cara com o Purga e o Juba, que vinham conversando animadamente e também com os skates debaixo do braço. Eles, com certeza, também toparam inesperadamente conosco e ficaram tão atônitos e mudos como nós. Achei que teria que, pela primeira vez, usar o skate para fazer acertar algo que não fosse uma manobra.
Cruzamos olhares atentos. Antes éramos, senão grandes amigos, amigos, de certa forma. Nada foi dito. Nada aconteceu. Seguimos nossos caminhos, incólumes. Éramos, francamente, uns meros moleques, todos assustados e nada durões. Não olhamos para trás. Eles talvez sim; nunca saberei. Hoje, se os encontrasse, perguntaria sobre o episódio, mas não tenho como saber. O Purga morreu de AIDS, segundo me disseram, em 1992, creio.
Um conhecido me disse que ia visitá-lo no hospital e me chamou para ir junto. Contei o que aconteceu, ele insistiu para eu ir, fazer as pazes, mas eu era muito imaturo, disse que não. Nem achei que ele iria morrer, mas na semana seguinte esse conhecido, o Alisson, me disse que ele havia falecido. Em 1995, já na universidade, quando vim passar um feriado em casa, meu irmão questionou-me se eu me lembrava do Juba.
“Sim, aquele babaca”, respondi, atrelado à imagem do passado, ao que meu irmão retorquiu: “Pô, eu o encontrei há um mês mais ou menos, ele perguntou como você estava. Ele morreu ontem na estrada, indo para Andradas”. Fiquei sem palavras. Não sei nem os nomes deles, só os apelidos. O Maurício não tem como confirmar minha história. Ele faleceu em 1997, fazendo rafting.
Em 1999, com meros 24 anos, tive minha primeira crise de meia-idade, mesmo sendo muito jovem. Numa tarde, sei lá o porquê disso, lembrei-me do episódio da Rua Berilo e dei-me conta de que era única pessoa que o vivenciou e que ainda estava viva. Não há descrição para a sensação de melancolia e de estranhamento que me abateu.
Mais de um quarto de século já se passou depois daquela tarde da qual só eu restei para contar a história; no começo do ano conheci, na pista nova, um skatista que também se lembra do Purga – a morte não pode obliterar a memória. Há uma frase de Jay Adams, lenda da arte/esporte, também já falecido, muito famosa. “Você não para de andar de skate porque fica velho. Você fica velho porque para de andar de skate”. Como os três daquele entrevero que não aconteceu de fato e do qual sou único sobrevivente, jamais ficarei velho.
* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com