DNA Onírico
O jornalista Daniel Souza Luz escreve crônica em que o foco é o sonho lúcido
O jornalista Daniel Souza Luz escreve crônica em que o foco é o sonho lúcido, com elementos da cultura pop e de locais em Poços de Caldas.
Sempre soube que eram sonhos, eram memoráveis e eram recorrentes. No começo os percebia como reais enquanto eles aconteciam, pois era criancinha quando eles começaram e eu ficava um pouco confuso por o cenário sempre ser o apartamento onde vivia. Sempre era de noite neles.
Foram proto-sonhos lúcidos, portanto; meu primeiro sonho lúcido, no entanto, foi uns anos depois destes preâmbulos fantásticos, mas ainda era criança quando aconteceu: estava no pátio do Colégio Canadá, onde fiz o jardim da infância, e uma freira mandou que eu parasse de brincar e voltasse para a sala.
Estranhei, pois em primeiro lugar não parecia tanto assim o colégio, que não existe mais (mas ainda existia, à época do sonho). Em segundo lugar, embora eu ficasse louco para voltar para casa e assistir desenhos animados, na verdade eu gostava desta escola, justamente porque era um ambiente alegre e laico.
Não havia aulas de religião e muito menos freiras. Então, no meio do sonho, tomei consciência de que estava sonhando. Meu primeiro sonho lúcido foi libertador, uma experiência inesquecível para uma criança. Não fiquei apavorado, não tive paralisia do sono e não sabia que existia o termo “sonho lúcido”, recentemente tornado mais popular pelo filme A Origem, dirigido por Christopher Nolan.
Só fiquei muito feliz, tanto como quanto estudava no Colégio Canadá. Na época deste sonho já estudava em outra escola, hoje centenária, num ambiente também laico, mas menos acolhedor. Como sabia que estava sonhando, interpelei a freira e disse-lhe “Isto é um sonho. Você não manda em mim”. Era uma senhora, ela fez uma cara de decepcionada… Ainda virei para ela mais uma vez e disse “Você não existe, vou continuar brincando”.
E fiquei na caixa de areia, com um carrinho de plástico vermelho na mão. Acordei pouco depois, mas feliz. Durou pouco essa mobilidade onírica consciente, mas foi marcante. Décadas depois, vi uma cena semelhante no filme Vanilla Sky, do diretor Cameron Crowe. Saudades desse Colégio Canadá. Lembro-me que o diretor se chamava Sérgio e ele dava aulas de judô ou karatê – alguma arte marcial; só lembro que não era kung fu – para nós.
Mas era algo muito lúdico, todos tínhamos seis anos ou menos. Eu tinha sentimentos muito divididos sobre a escola: detestava não poder assistir desenhos animados e invejava meu irmão mais novo, Eurico, que ficava em casa assistindo-os. Por outro lado, ele queria demais ir à escola comigo e eu não entendia isso. Mas quando chegava lá era um ambiente tão bom e aprendia tantas coisas tão alegremente que me esquecia dos desenhos do Zero (sim, além do gibi, existia um desenho animado), do Joh-nny Quest, Carangos e Motocas, Speed Racer e tantos outros que adorava.
Na hora de ir embora pra casa, que eu tanto ansiava antes, para poder ver TV com meu irmão (minha irmã Fernanda ainda não havia nascido), no entanto, eu ficava apavorado. É que havia uma oficina mecânica na Avenida João Pinheiro, num local onde hoje há uma padaria, e me aterrorizava ao ver as faíscas de quando eles soldavam algo. Eu deveria achar que algo ia explodir ou que estavam montando um robô gigante assassino ali, sei lá. Minha experiência com a escola era uma montanha-russa de emoções conflitantes.
O Colégio Canadá, no fim, foi parar perto da casa onde morei nos anos noventa, no Novo Mundo, e feneceu silenciosamente na mão de outros proprietários, pelo o que sei. Um capítulo da história de Poços de Caldas que se perdeu. Toda esta divagação e não falei dos sonhos fantásticos que tinha desde criancinha. Não há como descrever a maravilha visual que eram estes sonhos, simplesmente não há palavras para isto.
Mas o que sempre acontecia é que olhava pela janela do apartamento onde morei quando era criança e estava tudo certo com a paisagem: o quintal do prédio, com uma casinha de utensílios para o jardineiro e vários varais, alguns com roupa. Em frente, os fundos de uma casa. Mas o céu sempre era diferente: às vezes, eu via o núcleo da Via Láctea. A Lua geralmente não aparecia, mas vários planetas apareciam tendo o mesmo tamanho dela ou maiores, como se estivessem muito mais próximos.
Júpiter, Marte e especialmente Saturno eram presenças constantes. Em vários desses sonhos, quando eu abria a cortina, havia outros planetas, desconhecidos e maravilhosos, por perto. Não era nada como Melancolia, da película do diretor Lars von Trier, não era assustador – era deslumbrante. Discos voadores eventualmente cruzavam o céu. Não era sempre que apareciam e raramente eram ameaçadores. Às vezes o tráfego de OVNIs era intenso.
Nas poucos casos em que me senti ameaçado por eles, eles sempre vinham sobrevoando de trás do teto da casa cinza que ficava à esquerda. Estas casas, assim como o prédio, existem até hoje no mundo real. Exatamente por isso, como disse minha irmã dias atrás, o prédio se parece com um sonho. O curioso a respeito dos discos voadores que sempre surgiam sinistramente por detrás da casa cinza, tendo ao fundo as montanhas, é que muitas vezes eles surgiam de dia e virava noite.
Mas eles nunca pousaram ou destruíram nada. Eventualmente viravam teco-tecos. Ou seja, nunca foram perigosos. Embora estes sonhos com o céu transformado tenham começado em tenra idade, continuei tendo-os mesmo depois que mudei do prédio. Foram inúmeros, sempre fascinantes, por décadas, do fim dos anos setenta até neste século. Tive-os até recentemente. O último foi há um par de anos.
Sonhei que a banda no wave – estilo musical pós punk oposto à onda new wave, nascido em Nova Iorque, no fim dos anos 1970 – DNA estava tocando no quintal do prédio. Como notou meu amigo Fábio Gonçalves de Carvalho, poderia ter descido lá o Mars, outra banda da mesma cena e com nome de planeta, mas alguma engrenagem mnemônica escolheu o DNA.
Dois integrantes, o Arto Lindsay e a Ikue Mori, estavam lá, tocando muito baixo para uma banda tão barulhenta e experimental, ao lado de um terceiro integrante indistinto, como se fosse o fantasma do tecladista Robin Crutchfield. Corri para a janela para ver o show, não queria perder um segundo descendo a escada até lá.
Afinal, se o DNA estava tocando no quintal do meu prédio sem qualquer motivo, se eu descesse talvez eles não estivessem mais lá quando eu chegasse. Então notei que o céu era igual ao dos meus sonhos recorrentes. Repentinamente, era noite, Saturno estava enorme no céu e naves espaciais nos sobrevoavam.
Foi a última vez que sonhei com este céu fantástico, que não aparece em nenhuma outra paisagem onírica – ele ocorre apenas no quintal do meu predinho da infância. Sempre que acontece, a sensação remete ao título de uma música de outra banda no wave, o Teenage Jesus and the Jerks: eu acordei sonhando.
* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com