Jackie faz recorte temporal em fato histórico
O crítico Marcelo Leme comenta sobre o filme acerca da ex-primeira dama
O crítico Marcelo Leme comenta sobre o filme Jackie, sobre a ex-primeira dama estadunidense Jacqueline Kennedy.
O filme inicia com um plano aberto, com um enquadramento arquitetônico rigoroso. Este apuro estético é uma insinuação a personalidade da protagonista.
Outros planos seguintes se assemelham sempre minuciosos, com o objeto focal no centro. Poderia-se colocar uma moldura e enquadrar tais imagens, especialmente aquelas que trazem a personagem título com seu vestuário impecável, tanto nos closes ou nos planos médios, dinamizando a beleza da ordem na Casa Branca com o caos da tragédia estampando os noticiários pelo mundo.
O signo da tragédia surge na marca de sangue como mácula no rosto, nas mãos, nas unhas e no vestido de Jacqueline Kennedy. As cenas se congregam a imagens de arquivo e a historia se constrói a partir da personagem diante uma lógica narrativa por vezes documental arranjada numa montagem fragmentada.
Filmes dentro de um filme, sendo cada um uma parte de memórias que se defrontam. Jackie é a primeira incursão cinematográfica do cineasta chileno Pablo Larrain nos Estados Unidos. Na bagagem levou um dos temas que mais aprecia: contextos políticos. São dele os longas No (No, 2012) e o recém-lançado Neruda (Neruda, 2016).
O contexto em questão diz respeito a um dos momentos mais aterradores da história estadunidense: o assassinato de John F. Kennedy, presidente dos Estados Unidos à época. Mas o filme fala de sua esposa, Jacqueline, a icônica primeira dama; e de seus interesses pessoais após a trágica morte do marido. Ela vislumbra um testamento midiático sobre quem fora o presidente – seu legado é comparado a Camelot. E em induções, também vislumbra um registro de quem fora ela, a inesquecível primeira dama.
A obra não é uma cinebiografia, trata basicamente dos quatro dias após o assassinato, um recorte temporal explanando o processo de luto até o funeral luxuoso, intercalado com cenas de entrevistas e um documento de apresentação da reforma da Casa Branca, proposta pela própria Jacqueline Kennedy.
A edificação de salas e objetos que pertenceram a outros presidentes como memória imortalizada do país é discutido num grau de comparação relevando importâncias. Numa cena em um carro, Jackie pergunta sobre ex-presidentes mortos. Todos são recordados. Kennedy também será? Nesse ponto passamos a conhecer um pouco mais de Jackie e o torno em volta do mito construído em cima de seu nome.
O filme está estruturado sobre a entrevista concedida a um repórter da revista Life, em Hyannis Port. É uma entrevista carregada de certa estranheza, já que a intimidade da ex-primeira dama se desvela num subjetivo testemunho que dá margens a lembranças, como uma reconstrução pessoal dos acontecimentos, elaboração da experiência singular da tragédia.
A reconstrução é restrita a uma visão privada e os fatos como ocorreram pouco importam ao cineasta, mas sim as descrições desses fatos segundo a entrevistada. Ela precisa comentar sobre a tragédia com os filhos; ela precisa dizer sobre a tragédia para o mundo. E que interessante são suas palavras proferidas, sendo a mentira um adorno da verdade.
Jackie traga um cigarro e logo diz: eu não fumo. Nem tudo se difunde e cada linha de seu discurso só poderá ser publicada mediante sua aprovação. Natalie Portman encarna a personagem com a devoção de uma entusiasta. A dicção, a serenidade calculada no tom de sua voz e a relutância dá a ela uma potencialização da personalidade absorvida, dividida entre a figura política edificada com a figura humana e suas emoções elucidadas na interpretação.
Sua performance é elegante e estudada e o filme depende exatamente disso, da força de uma grande protagonista. Penso, assim, no que seria do filme se não tivesse uma atriz com a competência de Natalie Portman para segura-lo. O filme é dela, a aposta certeira do ascendente Larrain.
* Marcelo Leme é psicólogo e crítico de cinema. E-mail: marceloafleme@gmail.com