Fake News na Câmara Municipal, um erro histórico
Ao entrarmos em um período de avaliação dos trabalhos na Câmara Municipal de Poços de Caldas, percebo comentários positivos em relação ao desempenho dos vereadores nos primeiros seis meses deste ano.
Porém, vejo vícios de origem em alguns desses posicionamentos; ora porque partem de analistas comprometidos com vereadores ora porque surgem dos próprios integrantes da atual composição da Câmara Municipal. Basta aprofundar um pouco na análise para perceber que nem tudo foi positivo, maravilhoso como querem fazer crer.
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Claro que reconheço dedicação em alguns dos eleitos, mas não em todos. Tem vereador cumprindo tabela e somente indo às sessões plenárias. Não propõe, não debate e não se posiciona. Certamente o tempo vai se encarregar de permitir que caiam as máscaras, basta o cidadão prestar um pouco de atenção.
Mas não estou aqui para avaliar individualmente os representantes do povo no legislativo municipal. Interessa-me analisar aquilo que entendo ter sido um erro histórico da Câmara ao permitir que fosse utilizada sua Plenária para fanfarronice.
Não me refiro isoladamente aos três ou quatro integrantes da esquerda, aos dois do centro, aos dois conscientes do que fazem, mas não se enquadram em qualquer espectro político, e nem aos demais considerados fundamentalistas que não estão abertos a nenhuma outra visão que não seja a própria.
Refiro-me objetivamente à totalidade da Câmara que permitiu, em março deste ano, que uma médica espalhasse Fake News ao se utilizar da Tribuna Popular por quase duas horas.
Um desserviço ao combate à covid-19, um ataque à saúde e um tapa na face da sociedade que viu um espaço democrático ser utilizado indevidamente. A oradora tinha o direito inalienável de lá estar, só não podia espalhar fatos não comprovados pela ciência e nem atacar a parte da classe médica que não comunga das mesmas ideias que ela.
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Andréia Almeida Magalhães, nutróloga, no dia 6 de março, defendeu tratamento precoce contra a covid-19 quando a ciência há mais de ano desaconselha essa prática por ser inteiramente ineficaz. Além disso, ela insinuou que colegas dela (outros médicos) deveriam ser responsabilizados pelas mortes de pacientes ao negar tratamento que utiliza cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina.
Em resposta a um questionamento que fiz à médica no programa Boca Boa, na Master Web Rádio, três semanas antes, Andreia Magalhães afirmou “não acreditar nem respeitar a Organização Mundial da Saúde (OMS), ignorar suas recomendações e defendia o chamado Kit Covid”, tão alardeado e defendido pelo governo federal.
Sou ardoroso defensor do uso da Tribuna por membros da população, desde que se obedeçam aos princípios estabelecidos no Artigo 151 da Resolução 854/2020 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Poços de Caldas, principalmente os que foram ignorados neste episódio. Vejamos:
II – “Os assuntos a serem abordados deverão ter caráter de utilidade ou interesse público, sendo vedada a utilização da Tribuna da Câmara para se tratar de assunto de interesse pessoal”;
V – “Em caso de desvirtuamento da utilização da Tribuna, o orador(a) será advertido(a) pelo Presidente uma única vez e, persistindo a ocorrência, terá a palavra cassada”;
Parágrafo único – “…O uso da palavra na Tribuna da Câmara se dará após a Ordem do Dia por até 10 (dez) minutos, exceto quando o Plenário manifestar seu desejo de questionar o orador, hipótese esta que prorrogará o tempo por, no máximo trinta minutos”
Os grifos que fiz em dois dos procedimentos (II e V) e no parágrafo único explicam-se por si só. Entendo que defender tratamento não aprovado pela OMS e incentivar o seu uso não tem nenhum interesse público.
Trata-se, pura e simplesmente, de visão pessoal, individualizada, e que não atende interesses coletivos visto que o único tratamento cientificamente comprovado para combater a covid-19 é a vacina. Garrafadas, xaropes, chás, e tratamento precoce é coisa de gente fanfarrona, que vive a alardear coisas sem comprovação.
Dessa forma, conforme estabelece o Regimento Interno da Câmara, o presidente da Câmara, Marcelo Heitor, que conduzia a seção, deveria ter advertido a oradora que se tratava de um discurso baseado em Fake News, sem amparo científico, e cassado a fala. Mas ele não o fez.
E não somente ele, como nenhum outro vereador quis se indispor com a oradora ou seus próprios colegas. Enquanto isso ela defendia tratamento ineficaz e atacava médicos que estão há mais de ano enfiados em UTIs atendendo pacientes infectados pelo coronavírus e infectando-se também. Em Poços de Caldas dois deles morreram pela doença, bem como outros profissionais da área da saúde.
Os vereadores fizeram ouvidos de mercadores (que significa fazer-se desentendido, fingir que não percebe ou não ouve o que se diz), acatando como verdade aquilo que mundialmente sabe-se não ser protocolo de tratamento para a covid-19.
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O próprio Ministério da Saúde (MS), em documento enviado à CPI da Covid, posicionou-se contra a difusão de tratamento com esses medicamentos defendidos pela nutróloga. Há que se lembrar que, nem mesmo as Emas do Palácio da Alvorada aceitaram a cloroquina, especificamente. Quem tiver curiosidade e quiser conhecer um pouco mais dessa deliciosa história basta entrar no Googlecom as palavras “Bolsonaro x Ema”. Vai se divertir.
Mas voltemos à Câmara! O erro que entrou para a história do legislativo foi medianamente corrigido pela presença no Plenário dos médicos e professores universitários Euclides Colaço Melo dos Passos e Otávio Augusto Fernandes Marques Bianco que, baseados na ciência descontruíram a fala da nutróloga.
Vale registrar que duas outras ações foram adotadas por um grupo de dez médicos que se sentiu atingido pelas palavras da oradora na Plenária Popular. Liderados pelo médico intensivista e cardiologista Eduardo Januzzi, a primeira providência foi o encaminhamento de pedido ao Ministério Público Estadual (MPE) para apurar possíveis excessos no pronunciamento.
A segunda, entrar no Judiciário com Ação de Notificação Judicial pedindo explicações à médica. O juiz deu 60 dias de prazo para que ela explique a fala na Câmara. Além disso, certamente ela terá de juntar documentação comprovando a eficácia de todos os remédios que defendeu. O prazo está correndo e dependendo das respostas os médicos proponentes, podem vir a entrar com ação formal contra a nutróloga.
Esta análise, como se pode perceber, não tem o objetivo de achincalhar os vereadores e a médica oradora. O ponto principal foi mostrar que a Câmara Municipal de Poços de Caldas faz parte de um dos poderes da democracia brasileira, juntamente com o executivo e o judiciário, e enquanto tal tem de ser respeitada e se dar ao respeito.
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Estamos vivendo uma das piores crises sanitárias dos últimos 100 anos, e uma casa de leis e fiscalização tem obrigação de saber separar Verdade de Fake News, separar interesse público do particular e não se deixar ser usada. O que não é cientificamente comprovado não deve ser propalado.
Simples assim, mesmo onde impera acordos implícitos de todos aprovarem certos pedidos sem discussão nem análise, como é o caso da aprovação do uso da Tribuna. Desta forma, uns ficam bem com outros e todos ficam bem com a pessoa que requer o direito de fala. E nesse jogo de pequenos acordos os vereadores seguem suas vidas políticas.
Oxalá esse erro histórico não se repita. E que esse lamentável exemplo sirva para amadurecer o posicionamento da esquerda, da direita, dos fundamentalistas que não aceitam outras opiniões. É fácil falar que todos agem em defesa da população.
Geram, com esse comportamento uma peça oratória para convencer incautos; difícil é posicionar-se claramente em defesa do povo. E é isso que se espera dos nossos representantes no legislativo. Esse foi apenas o primeiro semestre para os atuais vereadores. Que os outros sete sejam melhores, até porque muitos estarão mais experientes e mais bem preparados. Tomara que assim seja. Todos merecemos.
* Marcos Cripa é jornalista e professor universitário