Ditadura nunca mais
Tinha 26 anos, formada em Letras. Vivia a utopia dos anos 1960, sonhava mudar o mundo. Amava ir à praia, brincar com a filha na areia e almoçar no domingo com os pais.
Era também diferente da massa, discutia política, estudava economia e lia muitos livros. Não admitia a censura, o grito e a violência, queria se expressar livremente enquanto mulher, enquanto ser naturalmente livre e consciente. Lutava contra a repressão e desejava uma sociedade democrática, com igualdade de oportunidades, era, portanto, para um sistema retrógrado, uma “subversiva”.
Presa em sua casa durante uma fria madrugada, foi levada para um local desconhecido. Encapuzados a colocaram num carro sob socos e gritos, “cala a boca, vagabunda!”. Sua mãe, aos 65, ao relembrar a história começa a tremer, um misto de tristeza e ódio.
Naquela noite, a “perigosa subversiva” que amava Drumond e Neruda, numa sala escura e abafada foi amarrada a um ferro, nua… levou socos, chutes e um fio foi colocado na sua vagina, por onde era eletrocutada. Insanos, seus algozes, entre risos, gritavam: onde estão seus companheiros? Em qual organização milita? Responda, sua filha da puta! – Desmaiava, não aguentava tamanha violência e quando acordava sentia a dor do seu corpo violentado.
Na sala havia um médico que a examinava e garantia, “ela aguenta mais”. Na mente, sua consciência lhe dizia: “Não os entregue, serão torturados, serão mortos, aguente até que fujam”. E ela resistia até onde aguentava. Foram 19 dias de tortura, estupro do seu corpo, enquanto que lá fora o mundo corria, Roberto Carlos era líder nas paradas musicais e o rádio orientava a população a denunciar os “terroristas subversivos” que ouviam Chico Buarque, que carregavam livros e queimavam incenso.
Ela, ali, largada à própria sorte, pensava: “Vai passar! Essa barbárie vai passar e um dia essa história será contada nos livros, nas escolas e todos e todas que passaram por essa tragédia terão seu nome consagrados na história dos que lutaram contra a ditadura, pela democracia e pela liberdade, contra a opressão”… era quase um mantra, uma fé inabalável que lhe dava forças para sobreviver à barbárie. Foram dias terríveis!
Assim como ela, milhares de homens e mulheres foram perseguidos, humilhados, torturados e mortos em toda a América Latina e no Brasil não foi diferente, muitos deram suas vidas por uma utopia tão simples e tão humana, a liberdade! Ela, por fim, não sobreviveu. Seu corpo marcado pela tortura inimaginável foi enterrado num cemitério clandestino, ou jogado ao mar, não se sabe. Desaparecida!
Sua família ainda hoje convive com a dor irreparável do seu desaparecimento. Pai e mãe não tiveram sequer a dignidade de enterrar a filha querida. Sua menina cresceu ouvindo histórias de sua mãe contadas pelos avós, histórias bonitas de uma mulher guerreira que virou estrela.
Sua história é a história de muitos que ousaram lutar contra a ditadura que jamais deve ser esquecida, que jamais deve ser relativizada e que jamais deve ser enaltecida, a não ser por doentes desumanizados que ainda hoje têm no ódio sua maior referência.
Ela não, ela foi heroína, deu sua vida por acreditar num outro mundo possível e serve de inspiração para que todos, nessa data de 31 de março, dia do início do golpe de 1964, digam: DITADURA NUNCA MAIS!
* Diney Lenon é professor da rede pública