Pesadelo de abril de 1964

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Eu tinha dez anos naquele primeiro de abril e guardo a cinza úmida e angustiante dos dias que o antecediam; sentia o medo que os adultos sentiam, o cheiro de pólvora e a insegurança sobre a hora seguinte.

Olhares de pavor, marchas com “Deus, Pátria e família” para “salvar o Brasil do comunismo”. E todo mundo tinha medo do comunismo, afinal diziam da escola e na igreja que o comunismo separava os pais dos filhos, ensinava as crianças a trair e que comunistas comiam criancinhas.

Tudo que a gente queria era ficar livre do tal bicho. Dia 29 de março fora o dia de Páscoa, 27 a Sexta-Feira Maior, dia de não comer carne, não brincar nem rir, dia de luto. Adormeci naquela noite de 31 de março, meu quarto não tinha forro – senti frio e tive pesadelos.

Minha alma mergulhou treva adentro e vi jornais com man-chetes “Fora”, “Basta!”, contra um presidente, um grande fazendeiro não comunista, que propunha reformas básicas, “de base”, para melhorar as condições de vida dos brasileiros e tirar o Brasil do “terceiro mundo”.

Civis e militares formando quadrilha para o golpe. Passeei por Juiz de Fora, onde um general abestado, que se apresentava como vaca fardada, movimentando tanques de guerra rumo ao Rio de Janeiro para fazer guerra contra o povo brasileiro.

Vi as tropas se movimentando, ouvi discursos histéricos no Congresso declarando vaga a presidência da República, o velho Tancredo replicando o golpe – “canalhas, canalhas, canalhas”. Militantes de esquerda sendo presos e arrastados, independente de idade ou gênero, as primeiras torturas a céu aberto.

Quanto mais adentrava a noite mais dessossegada ficava minha alma – cavalarias contra os jovens, presos sem mandados ou garantias, empresas destruídas.

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Estava no Rio de Janeiro quando o fogo da indigência moral e intelectual destruiu o prédio da União Nacional dos Estudantes.

Em Ibiúna quando centenas de estudantes foram presos por se reunirem; no Calabouço quando um menino de 18 anos foi assassinado; no recreio da minha escola onde meus olhos viram o menino franzino cercado de outros meninos que gritavam para ele – comunista, comunista!

Era filho de um sindicalista moderado. Vivi a insônia desesperadora e o cheiro fétido dos camburões. Senti o cheiro podre do recrutamento dos “esquadrões da morte”, policiais embalados pela crueldade e drogas, prendendo, estuprando, torturando bebês para arrancar confissões das mães, matando, dando sumiço.

“Guardiões” da pátria descendo ao mais repulsivo nível de humanidade, aprendendo técnicas de sevícia – meros assassinos. Jovens banidos e sem pátria. Generais en-galanados dando ordens para tudo isso.

Mais na madrugada, um corajoso Alencar Furtado, deputado pelo Paraná resumiria o tempo – “para que não haja no Brasil lares em pranto; para que as mulheres não enviúvem de maridos vivos, quem sabe, ou mortos, talvez – viúvas do quem sabe e do talvez; para que não tenhamos filhos de pais vivos ou mortos, órfãos do que sabe e do talvez”.

Milhares de presos e torturados, centenas de mortos, movimentos populares sufocados, a cultura sitiada, imprensa controlada – silêncio, censura, medo, noite fria e tragicamente longa.

Acordei vinte e um anos depois e a dor não passa, o pesadelo me assalta a cada noite, cada manhã é um suspiro de “estou vivo”.

Sessenta anos depois, a intolerância e a besta fascista ainda espreitam nossos sonos, ainda tem fome de poder e sede de sangue. Ditadura nunca mais. Fascistas não passarão!

* Paulo Tadeu é ex-prefeito, ex-vereador, médico veterinário e presidente do Diretório Municipal do PT