Folhetim
Na coluna Aspectos da Literatura Poços-caldense, Huendel Viana escreve sobre o escritor Jurandir Ferreira.
I. A carta
Quando Jurandir Ferreira se virou para fechar o portão de sua casa, naquela manhã de março de 1953, notou que seu jardim anunciava o outono. Um sorriso lhe brotou com naturalidade. Estava contente com o artigo escrito na noite anterior. E mais do que isso: trazia na pasta um documento precioso, que talvez um dia fosse parar nos anais da literatura.
Fazia pouco mais de dois anos que seu amigo Eduardo Adami escrevera um livro. Na ocasião, Jurandir tinha lido os manuscritos e o aconselhado a publicar. Eduardo havia recebido até uma carta elogiosa de um escritor famoso: Godofredo Rangel – amigo de Monteiro Lobato e membro da Academia Mineira de Letras. Era esta carta que agora Jurandir trazia na pasta. O amigo Eduardo o tinha autorizado a citá-la em seu novo artigo.
“Bom dia, doutor”, alguém gritou ao longe assim que Jurandir pôs o pé na rua. Àquela altura ele já era famoso na cidade – como escritor e como farmacêutico. Atuava no jornalismo havia mais de 20 anos e tinha publicado dois livros em São Paulo, tornando-se o primeiro romancista da terra.
Com discrição, ele saudou o conhecido, ainda em frente ao n. 247 da rua Rio de Janeiro, onde residia desde que se casara. De camisa e gravata, com a cabeleira penteada para trás, Jurandir retomou a rotina diária, encaminhando-se ao seu laboratório de análises clínicas, que ficava junto à Farmácia Rosário, na rua Assis Figueiredo.
Andar a pé era um de seus prazeres. O pensamento ia longe, e naquele dia tinha razões genuínas para decolar. O sr. Godofredo lhe dera aula de Português no ginásio, e o incentivara a escrever. Agora, Jurandir, aos 47 anos, estava ali, com a carta do professor nas mãos, escrita em janeiro de 1951, meses antes do falecimento do mestre – o que tornava aquele documento ainda mais precioso.
A distração fez Jurandir atravessar uma rua sem olhar para os lados. Já estava prestes a cruzar o rio Pardo, quando a torre do Mercado, lá do outro lado, o fez despertar. Os automóveis vinham tomando o lugar das carroças e ameaçando os pedestres. Era preciso ficar atento. Mas àquela hora a vida nas ruas estava apenas começando. Só alguns trabalhadores passavam com seus carrinhos de mão, transportando caixotes e sacas para abastecer o comércio.
Ao alcançar o Ponto de Ônibus, já na calçada do laboratório, Jurandir voltou a pensar na carta. Assim que adiantasse algumas análises que o aguardavam, daria um pulo no “Diário de Poços” para entregar seu artigo, que falava da “obra extraordinária” do médico Eduardo Adami e do seu breve lançamento pela editora Saraiva, em São Paulo.
No fim da tarde pretendia passar na Livraria Vida Social para ver se encontrava o também escritor Lindolfo Lino, com quem mantinha um diálogo franco. Naturalmente o assunto do dia seria o dr. Eduardo – a nova promessa das letras locais. “Vou ler alguns trechos da carta para o Lino”, divagava o farmacêutico enquanto vestia seu jaleco branco para mais um dia de trabalho.
Aquela tinha tudo para ser a década de ouro da literatura poços-cal-dense. E seria!
continua…
* Huendel Viana é mestre em Teoria Literária pela USP. Publica esta coluna quinzenalmente, às quartas-feiras. E-mail: caixazul@yahoo.com.br