Sobre bundas, Voltaire e o segredo do universo
A atriz e escritora Beatriz Aquino escreve a crônica Sobre bundas, Voltaire e o segredo do universo, em que aborda a futilidade que prevalece nos dias atuais.
Um grande petisco romântico burguês. É o que viraram as atuais e idealizadas famílias na sociedade. Um apanhado de convenções. Um combo pedido hipnoticamente no balcão de fast food.
A mocinha fala para o atendente: “Por favor um marido diplomado, dois filhos de olhos azuis e para acompanhar um leasing imobiliário de 45 anos.” As clínicas de fertilização entraram em falência. Agora qualquer balcão de aço espelhado vende sonhos embalados em papel de sanduíche.
Espelhos perfeitos. Só se vê o que se quer ou o que se precisa ver. Bulimia da alma, anorexia de valores. As redes sociais são esses espelhos que deformam em perfeição a normalidade humana. Porque ninguém quer ser normal e singelo. Até o porteiro do prédio, o seu Zé da Padaria e Homem do saco tiram self fazendo biquinho.
É um inferno. Um mundo de celebridades em um show sem expectadores. Uma peça teatral onde a platéia inteira sobe ao palco. Todos querem ser protagonistas. E o mundo prático às moscas. As máquinas de café gotejando esperando a reposição dos grãos.
Todas as máquinas manuais esperam empoeiradas e saudosas do velho manejo humano. O virtual venceu tudo. A ilusão venceu tudo. Valium, Lexotan. Alimento de zumbis. A humanidade inteira se debatendo eletrizada pelos estímulos da rede. De dia, a intensidade das anfetaminas: Instagram, Twiteer, facebook, snapchat.
Notícias de última hora, o parto da estrela, a placenta da estrela, o umbigo do filho da estrela, a bunda da estrela. Tudo virou uma grande bunda. O mundo mudou de eixo. Agora estão todos a cheirar os fundilhos uns dos outros. A bestialidade em seu mais alto grau de satisfação.
Esqueçam as ironias inteligentes, o humor ácido. Não é mais necessário pensar. Galileu estava errado. O traseiro da estrela é o centro do mundo e todos giram em torno dele como minúsculos micróbios. Um monte de vespas em torno de um último favo de doçura. Mariposas eletrocutadas em torno de uma luz artificial.
O mundo foi devorado junto com suas virtudes. Só sobrou o traseiro. O fim do mundo fica nos fundos mesmo. E todos aplaudem. Os sensatos, os dignos, os eruditos e os virtuosos. Todos aplaudem a grande bunda. “O que se há de fazer, meu velho?! Diria Voltaire a Baudelaire se fossem vivos atualmente.
Até a filosofia e a ciência se renderam á essa esfera desproporcional. Astrofísicos agora se dedicam ao estudo desse fenômeno. Sua gravidade é estudada minunciosamente. A humanidade inteira dedica metade da existência ao exercício de levar o traseiro até a nuca e a outra metade dela para gerenciar sua queda.
O declínio do mundo, a derrocada das grandes potências, o tombar das monarquias. Tudo cairá junto com a bunda. O Reino Unido, a Alemanha. E senhoras desesperadas carregando seus traseiros plastificados gritarão através de bocas disformes: “Salvem a monarquia!” E todos choram. Mas por enquanto só sorrisos e biquinhos. Enquanto o deriérre ainda estiver se sustentando em um ângulo considerável a pessoa ainda se considera gente.
Depois disso a invisibilidade, a reclusão, o retiro e os tranquilizantes. Um mundo permeado de lembranças. Álbuns de fotografias em névoas de propofol. Mas por enquanto, as luzes e o estrelato. A perfeição dos filtros dos aplicativos, o click no restaurante da vez, no camarote da vez, com o marido da vez, parindo o filho da vez. Tudo é da vez.
O mundo inteiro recebeu a pulseirinha do camarote, o up grade para a classe executiva. E o avião percorre os céus em uma nuvem de Valium com o bico da nave apontando cada vez mais para baixo. O lounge vip ruindo devido a super lotação. Estão todos em queda, mas ninguém se importa desde que dê tempo para dar um último click. A tal da posteridade. É necessário existir. É urgente existir. Fazer algum sentido nessa selva alucinada de confetes e Red Bulls.
Humanidade aditivada. Aditivada e depois sedada. Dardos tranquilizantes no pescoço para obedecer, sono profundo, hipnose profunda, ordens subliminares estritamente seguidas e depois choque nas genitais para acompanhar a turba. E todos continuam obedecendo.
Todos obedecem ao olhar da câmera. Action time da manhã à noite. E todos riem porque os deuses lá em cima precisam de entretenimento. Há risco de eles perderem o interesse de vez e extinguirem a raça humana então, contamos essas histórias. Somos Sherazades autobiográficas de imaginação mórbida. Bobos da corte de um rei insano. Dead man walking no corredor da morte contando uma piada mais do que batida sobre nós mesmos…
* Beatriz Aquino é atriz e escritora. E-mail: beapoetisa@gmail.com