Calma, Bete

O jornalista Daniel Souza Luz relembra os tempos em que jogava bete no meio da rua

Uma expressão que quase me custou uns hematomas quando eu era criança foi “Calma, Beth”. Era uma gíria muito popular no começo dos anos oitenta, disseminada pela televisão e em especial por alguma novela global, salvo engano, que a transformou em bordão.

Achei que era de origem televisiva, mas, ao que parece, foi mesmo a Blitz, a famosa banda carioca de new wave besteirol, que a inventou, na música Betty Frigída. Se alguém me dissesse que foi inventada em Bete Balanço, do Barão Vermelho, acabaria acreditando, pois mal me lembrava mais de nenhuma das duas.

Enfim, quando alguém estava agastado ou apressado, costumávamos dizê-la, brincando, para qualquer um, fosse menino ou menina. A questão é que uma vez caí na besteira de dizer isso para um colega de sala invocadinho, o Luciano Coelho – hoje um bom amigo.

Pra quê? Ele respondeu na lata: “Tá me chamando de mulher? Eu te meto a mão na cara. Cala a boca.”. Fiquei assustadíssimo, era um modo unissex de se dirigir a alguém. Além disso, já o tinha visto, numa festa de aniversário, desafiar e bater em outro moleque repetente que estudava conosco e que tinha o dobro do nosso tamanho – literalmente, não é força de expressão; o sujeito era e ainda é um gigante.

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Fui morrendo de medo para a escola no dia seguinte, mas ele se esqueceu completamente do episódio, conversou comigo como se nada tivesse acontecido. A expressão me remete a outros momentos emocionantes da minha infância, mas menos ameaçadores e mais lúdicos. Os jogos de bete, extremamente divertidos e que também eventualmente geravam uns desentendimentos, só que mais de igual para igual.

Talvez seja o jogo de rua mais legal que já existiu, um esporte não reconhecido com regras que nunca foram escritas, mas que quase toda a garotada conhecia. Ao menos a do meu bairro. E, provavelmente, as regras dos bairros do outro lado da cidade eram outras.

O importante é que as pelejas eram movimentadas. Para quem não conhece: são duas duplas, uma contra a outra, dois com o taco, nome pelo o qual o jogo também é conhecido, e outros dois com a bolinha, geralmente de tênis. O objetivo é ficar com os tacos; quem os está com a posse precisa defender uma base marcada com giz, que chamávamos de casinha, com uma um objeto dentro, que não podia ser derrubado pela bolinha, que era lançada pela outra dupla de trás da casinha oposta.

Se derrubassem o objeto na casinha, ganhavam o taco. O tamanho do campo variava, de acordo com o bom senso. O objeto que usávamos na casinha eram latas de óleo de cozinha, que hoje nem existem mais, e que eram perfeitas para aquele fim, pois não tombavam à toa. Sempre jogávamos na rua Berilo, a mais plana do bairro.

Creio que os motoristas e vizinhos não eram muito nossos fãs. Tinha um guri do bairro ao lado que também não era, ele disse que não precisava de tantas regras, que era só para fazer o básico, descrito acima. Nunca lhes demos ouvidos. Era cheio das complicações. Quando alguém acertava a bola com o taco e ela voava longe, podia-se correr e cruzar os tacos, marcando pontos. Não lembro mais quantos eram necessários para encerrar a partida.

Quando se estava com os tacos fora das casinhas, se alguém acertava a latinha ou os portadores do taco, esses eram queimados e tinham que o entregar para a equipe adversária. Aí começa a treta: para tirar o taco da casinha, para beber água, por exemplo, precisava gritar “tutudi”; na hora que se punha o taco de volta, gritava-se “nanadi”.

Se alguém se esquecia de fazer isso podia ser queimado com a bolinha e perdia a vez. Outra manha: não se podia pegar o taco do adversário, quando ele era queimado, sem antes pedir licença. Se pegasse sem falar nada já o perdia na mesma hora e voltava tudo como era antes.

Ou seja, por causa dessas minúcias, as duplas que ficavam de fora esperando o jogo acabar para tomar o lugar dos perdedores, ou mesmo quem tava ali de bobeira e nem queria jogar, assistia aos jogos atentamente. Toda vez que alguém se esquecia de alguma dessas pegadinhas e cometia uma simples gafe, como não dizer os tais “tutudi” e “nanadi” (sei lá de onde surgiram com essas pala-vras, que nunca mais ouvi e cujo significado desconheço fora desse contexto), a plateia ia ao puro delírio.

Castigavam sem dó: “Mas é burro, hein?”, “Que anta!”, “Animal!” e outros “elogios” surgiam em meio às gargalhadas de mofa. Posso estar sendo injusto, mas creio que um amigo, o Paulo Augusto Rodrigues, gostava mais de tirar sarro da cara dos outros do que de jogar. Isso quando não saía briga porque alguém levantava o taco rapidamente da casinha, para provocar os lançadores, e acabava queimado de fato por não ser rápido o suficiente.

Aí as risadas não ajudavam muito a manter o bom clima entre a dupla desgraçada. Numas férias resolvemos jogar na rua Dr. Agnelo Leite Filho, também no bairro Marçal Santos, mas mais movimentada. Não me lembro o motivo. Talvez seja porque meu pai, ao nos ver jogando, desesperou-se, pois disse a mim e ao meu irmão que na sua terra natal, Poço Fundo, bete era jogo “de maricas”. Rimos e explicamos que não tinha nada a ver, mas o choque cultural foi grande.

Voltando à questão de gênero, as meninas até jogavam às vezes e não me lembro de alguém achar isso um problema, mas era um jogo majoritariamente masculino. Então pode ser que tenhamos convencido nossos amigos a mudar de rua. O fato é que num jogo lá eu vi uma cena de cinema.

Contando não deve ter muita graça, mas assistindo foi hilário. Uma bolinha foi mandada dentro do jardim de uma casa. Havia uma reserva e o jogo continuou. Um garoto do bairro, Marcão, abaixou-se sobre a mureta para apanhar a bola no jardim.

Ao mesmo tempo um amigo, creio que o Daniel Zingoni, foi rebater uma bola, mas atabalhoadamente deixou o taco escapar das suas mãos. O taco saiu voando que nem foguete e passou rente às costas do Marcão, justo quando ele, por uma sorte espetacular, se abaixou.

Quando ele se virou para nós, com cara de inocente, deparou-se com todos atônitos, um pouco antes da explosão das risadas. Como disse meu amigo Coruja na hora, se eles tivessem tentado coreografar o movimento, não conseguiriam e o Marcão tomaria uma senhora pancada nas costas. Bem, disse que não seria tão engraçado de ler. Mas como me diverti lembrando-me de tudo isso.

*  Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com