Grupo pop

O jornalista Daniel Souza Luz fala sobre as músicas que tocavam nas rádios nos anos 1980 e 1990

O cheiro do feijão cozido impregnava o apartamento. Era uma leseira depois do almoço e da escola. Mas ninguém usava esse termo “leseira”, acho.

Falávamos que estávamos “morgados”. Acho que ficávamos morgados o dia todo, por nossos relógios biológicos não estarem adaptados a acordar cedo, recém-adolescentes que éramos, obrigados a ir ao colégio de manhã, após termos sempre estudado à tarde. Só melhorávamos quando saímos pra rua para zoar, do meio da tarde em diante.

O rádio estava sempre ligado. Legião Urbana, Ira!, Plebe Rude, Capital Inicial e Titãs tocavam o tempo todo, eram tão populares quanto Roberto Carlos era para os nossos pais. Tinha banda chata e convencional como o Barão Vermelho também, que até hoje não me desce, isso lá tinha. O doido, no entanto, é que no meio da programação, às vezes, tocava Garotos Podres, Replicantes e Toy Dolls.

A primeira vez que ouvi “Eu quero matá-lo/aquele porco capitalista” foi numa rádio FM normal, dessas que hoje tocam, sei lá, Chris Brown. Tá, naquela época também tocava Chris de Burgh, que é tão ruim quanto ou pior, não era tão diferente assim também.

Dizem que naquela época havia uma rádio muito boa em Poços de Caldas chamada Cidade FM, que estaria ligada nas novidades do rock dos anos oitenta, mas não guardei o nome da rádio e nem dos locutores, só das músicas e grupos mesmo, quando consegui guardar.

O interessante é que não consigo imaginar uma rádio convencional tocando O Satânico Doutor Mao e os Espiões Secretos, banda do vocalista do Garotos Podres, em 2018. Até porque não é um clima otimista de redemocratização, mas sim uma atmosfera sinistra em que a extrema-direita volta a pedir golpe militar na cara dura. Pior ainda, no fim dos anos oitenta não havia essa praga fundamentalista religiosa.

À época, havia toda uma grita contra censura; hoje, se alguém tocar algo com o nome “satânico” no rádio, correrá o risco de perder o emprego. Bem, provavelmente naquela época também e talvez eu esteja edulcorando o passado, afinal a Igreja Católica conseguiu censurar o Je Vous Salue Marie durante a presidência do besta do Sarney. Isso fez com que eu assistisse ao filme com uns quinze anos.

Levou outros quinze anos para ter coragem de assistir um filme do Jean-Luc Godard de novo, que hoje considero um gênio, pois assisti ao filme apenas porque ele foi proibido, sem ter maturidade alguma para isto – e achei um porre. Àquela época rolava também toda uma discussão bizantina na imprensa musical sobre qual seria o grupo pop perfeito.

Bobagem, enquanto se digladiavam com isso havia toda uma geração de músicos e inovadores da eletrônica renovando tudo e nada disso de pop perfeito existe, nada é perfeito. Até porque todo mundo sabe que a música pop perfeita foi feita em 1967 e é Femme Fatale, do Velvet Underground.

Enfim, só quem viveu antes do advento da internet e não tinha grana pra comprar discos para saber como é emocionante quando se tocava uma banda da qual você gostava muito no rádio. Era a oportunidade de gravar a música, você tinha que ficar atento. E o mais importante: não ligar na rádio para pedir a música. Senão eles soltavam alguma maldita vinheta em cima da música.

O importante era ligar a rádio e se ligar como um caçador de tesouros no fundo abissal. Eu não gravei Papai Noel, Velho Batuta. Tive que esperar anos para ouvir a música depois, após o começo dos anos noventa. Vocês acham que tocava só Nirvana no rádio quando chegou a era grunge? Mal tocava. As rádios preferiam 4 Non Blondes e outras bandas mais palatáveis, nem Pearl Jam rolava tanto assim.

O poperô já tinha dominado tudo antes. E nem era ruim no começo, bandas como o Bomb the Bass eram muito criativas; hoje suas enérgicas colagens sonoras só não soam como a música pop eletrônica do futuro porque o futuro já chegou e ele é mais distópico. Mas já sabia que seria assim, não confiava nos DJs.

Eu ouvia Smiths desde os anos oitenta e lia algumas das letras, sabia que os DJs de rádio não mereciam crédito. Com exceção do DJ Iraí Campos, que inventou a esquecida e engraçadíssima paródia de rap chamada Sbrebow, outro hit dos estertores dos anos oitenta.

* Daniel Souza Luz é jornalista e revisor. E-mail: danielsouzaluz@gmail.com